13.11.24

Amsterdão: relatar factos não é antissemita, é jornalismo

 


«Não vou desenvolver muito sobre o que aconteceu em Amsterdão, no último fim de semana. Fico por isto: condeno, à dimensão da gravidade de cada ato, os gritos islamofóbicos da claque do Maccabi Tel Aviv (conhecida pelo seu racismo); a violação do minuto de silêncio pelas vítimas de Valência; o vandalismo contra bandeiras palestinianas penduradas em casas de cidadãos de Amsterdão; o ataque a cidadãos da cidade; e os ataques violentos, planeados (parece que vários o foram previamente) ou reativos, contra adeptos e/ou membros da claque israelita. Nenhuma das coisas justifica a outra. E nada justifica a incompetência das forças de segurança holandesa, que não conseguiram impedir estes atos.

Saltar desta infeliz confluência entre a violência no futebol e a violência política (de parte a parte) para a utilização de termos como “pogrom” é um insulto abjeto à memória do povo judeu. Já nem discuto a transformação automática de ataques a Israel ou israelitas, sejam graves e violentos, como estes foram, ou apenas críticas a políticas do governo ou do Estado, em antissemitismo. Confundir pogroms, perseguição de brutal violência contra uma minoria religiosa e étnica com apoio das autoridades, com o que aconteceu com uma claque em Amsterdão é ajudar a relativizar o que foi e é a perseguição aos judeus – aconselho este “fio” de Brendan McGeever, estudioso do antissemitismo.

Não é por acaso que a extrema-direita holandesa, como boa parte da extrema-direita europeia, acompanhou o absurdo. Hoje, os seus judeus são outros. A cultura do ódio é que se mantém. E contam com os que, da trágica história europeia, retiveram a identidade das vítimas, não o processo político que leva ao horror.

Mas o meu tema neste caso é outro. É a forma como a comunicação social é condicionada pela chantagem, a ponto de considerar que os factos são, eles próprios, antissemitas. É um dos poucos casos onde praticamente nenhum órgão de comunicação social mainstream europeu resiste. Não por uma especial sensibilidade, mas por medo de uma acusação que se tornou tão mais banal, quanto mais brutal vai sendo a carnificina em Gaza. Quanto mais crimes comete, mais Netanyahu se socorre da memória dos crimes contra os judeus para se defender. Da estrela amarela de David na lapela, nas Nações Unidas, à utilização recorrente de expressões como “pogrom” e “Holocausto”, passando pela acusação de antissemitismo conta qualquer pessoa ou instituição que não o apoie incondicionalmente, a falta de pudor tem sido absoluta. Porque resulta.

Algumas pessoas nas redes sociais, com especial destaque para o jornalista e colunista do “The Guardian” Owen Jones, deram-se ao trabalho de verificar as imagens que nos foram sendo apresentadas dos confrontos e seguir o fio dos acontecimentos. O resultado é um dos mais evidentes casos de desinformação, criada não pelas redes sociais, mas por alguns dos mais prestigiados títulos e canais da imprensa ocidental.

Veja-se a forma como a Sky News, que tinha uma repórter em Amesterdão, faz uma primeira reportagem falando “nos ataques a adeptos israelitas”, para depois editar e apagar a peça das suas redes, passando a noticiar os mesmos confrontos como um “ataque antissemita”. Como na peça do “The New York Times”, com o mesmo conteúdo, não há qualquer prova dessa alegação e as citações do responsável pela polícia nunca referem essa suspeita. A única prova de ódio étnico, e que aparece no mais prestigiado jornal norte americano, é precisamente a dos membros da claque israelita a gritarem mensagens de ódio contra os árabes e a celebrar a destruição das escolas palestinianas.

Uma prestigiada fotojornalista radicada em Amesterdão viu a cobertura que fez dos confrontos ser usada como prova das agressões à claque israelita. Problema, a própria fotógrafa diz que as suas imagens mostram o contrário e exigiu, publicamente e junto dos órgãos de comunicação social que as difundiram, que escrevessem o que ela viu e fotografou: “Adeptos do Maccabi atacaram cidadãos de Amesterdão em frente à Estação Central após o jogo”. Podem ver a entrevista que Owen Jones lhe fez aqui.

À hora em que escrevo, apenas os canais públicos de TV da Alemanha e Luxemburgo corrigiram a informação que tinham veiculado. BBC, CNN, “The Guardian”, “Bild” e “The New York Times” nunca se retrataram ou corrigiram a peça e continuam a usar imagens de hooligans a espancar cidadãos de Amesterdão como um caso de antissemitismo.

Em Gaza, a que Israel nega o acesso à imprensa internacional, ainda há condicionantes que explicam falhas do trabalho jornalístico. As fontes são escassas e a credibilidade do Hamas não é cartão de visita que se apresente. Mas no centro da Europa, à luz de todos, com imagens vídeo e fotografias a relatar que houve confrontos entre uma claque e habitantes locais, como acontece vezes sem conta todos os anos, a delirante narrativa criada pelo governo israelita foi seguida por todos os principais canais e órgãos de informação do planeta sem qualquer rebuço.

Quem um dia procure, nos arquivos, o ano em que Gaza foi arrasada e se levou a cabo limpeza étnica (assim foi denominada pelo jornal israelita Haaretz), encontrará a notícias de que finalmente os poderes europeus se ergueram, pela voz da presidente da Comissão. Não para falar de Gaza, mas para condenar um lamentável episódio envolvendo hooligans de uma claque, transformado num “pogrom” através da remontagem e reescrita dos factos inicialmente revelados pelos próprios jornalistas. O contrastante com a cumplicidade passiva perante cinquenta mil mortes é uma obscenidade política. A que nos estamos a habituar demasiado facilmente.»


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