11.11.24

Ao fim de quantas mortes acaba um estado de graça?

 


«Tem sido refrescante ver a mudança do ambiente do comentário político. Onde antes havia excitação, há ponderação. Onde antes havia julgamento, há compreensão. Toda a gente acha grave o que aconteceu com a greve no INEM, na semana passada. E quase todos os comentadores acham excessivas consequências políticas para uma ministra que, desde que chegou ao lugar, soma erros, conflitos e desastres.

Perante este caso, Marcelo Rebelo de Sousa disse que não gosta “de falar de problemas específicos da governação ou da Administração Pública, mesmo quando são muito urgentes ou muito prementes”. Que não se podia pronunciar sobre o que está em curso e casos concretos. Falou da urgência em encontrar soluções, ignorou as responsabilidades políticas. Todos acompanhamos a presidência de Marcelo há tempo suficiente para saber que nunca se esquivou, quando quis, a falar de problemas específicos da governação, em curso e bem concretos. Em enorme detalhe, quotidianamente e quase sem filtro. E a confrontar os governos com as suas responsabilidades.

O que disse o Presidente da República quando, em 2023, uma grávida teve de ser transportada para uma urgência a 200 quilómetros? “Que esse caso não é um caso que seja positivo – é muito negativo para o Serviço Nacional de Saúde e para o sistema nacional de saúde em geral –, é verdade. Que há erros, que há lapsos e que se tem de apurar o que aconteceu para, se for caso disso, responsabilizar quem deve ser responsabilizado, é fundamental. Um erro de 200 quilómetros é, se for assim, um erro muito grande”. Aparentemente, um erro que tenha custado mais de dez mortos, nem por isso.

Mais uma mentira

O debate, neste caso, não é sobre as fragilidades estruturais do INEM, que sabemos existirem. Tem menos de metade do pessoal que precisa num SNS que parece viver de horas extraordinárias. Um problema que atravessa grande parte dos serviços do Estado e que o governo pretende resolver ao sabor de cada escândalo, já que impôs a regra geral de que só entra um funcionário público por casa um que saia. A descida do IRC e do IRS para os jovens mais abonados não sai de borla. É paga por quem mais precisa do Estado.

O debate sobre a responsabilidade do último governo – e anteriores – na degradação dos serviços públicos é legitimo, desde que todos os que aplaudem o excedente orçamental não queiram ficar apenas com as boas notícias. O que não é legitimo é ignorar a responsabilidade direta neste caso: uma ministra negligente perante a marcação de uma greve. Repare-se que não estou sequer a aplicar a máxima que valeu nos últimos oito anos – que os ministros são politicamente responsáveis por tudo o que aconteça nos serviços que tutelam, mesmo que não tenham responsabilidade direta no sucedido. Estou a cingir-me ao que a ministra tinha de fazer e não fez.

Tudo começou com mais uma mentira, em que Ana Paulo Martins te sido recorrente –nas razões apontadas para a sua demissão do Santa Maria, quando já se sabia candidata a ministra; na novela sobre os contratos com os helicópteros de emergência; nos números que divulgou das operações de oncologia; na tentativa de esconder quais eram as urgências fechadas. “Nós não estávamos à espera, porque estamos de boa-fé” disse a ministra da Saúde, quando confrontada, na terça-feira, com a greve do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar às horas extraordinárias.

Mentiu, porque, como noticiou o Expresso, a ministra foi notificada não uma, mas duas vezes da greve, tendo sido a última dez dias antes do seu início. A única exigência era começar uma negociação. Apesar da sensibilidade deste serviço, nem sequer responder aos mails. Dos constrangimentos causados por esta greve poderão ter resultado mais de dez mortos. Apesar de ser improvável a ausência de consequências de haver menos de dez pessoas a atender chamadas de todo o país, na segunda-feira, com o mais baixo atendimento numa década, a relação de causalidade terá de ser demonstrada. Se se confirmar, uma reunião bastaria para evitar mortes.

Andar atrás de mortes, não de avisos

Igualmente grave é o INEM não ter preparado serviços mínimos para uma greve que há muito sabia que iria existir. E só ter preparado os serviços para a coincidência com a greve da função pública quando tudo derrapou. A direção do INEM diz que os serviços mínimos para os funcionários públicos, no dia 4, já estavam definidos no acordo coletivo a Federação sindical afeta à CGTP. Acontece que o sindicato que marcou a greve nada tem a ver com essa federação, coisa que uma direção do INEM que não mudasse de três em três meses saberia.

Há, portanto, duas responsabilidades: a ministra que ignora uma greve e depois finge que não sabia da greve e o presidente do INEM que não se apercebe que duas greves se vão sobrepor e reage tarde demais. Os problemas estruturais do INEM, reais, são outro tema que não absolve estas duas pessoas das suas responsabilidades. Tudo podia ter sido evitado com uma reunião, como ficou evidente no fim da semana passada. O tema é este.

Na reação a tudo isto, Luís Montenegro, para além de se ter limitado a pôr em dúvida a relação da causalidade entre a greve e as mortes, explicou que o governo não pode “andar atrás de pré-avisos de greve e a fazer reuniões de emergência”, preferindo, como se tornou um clássico, ficar-se pela herança que recebeu.

Para Montenegro, as negociações urgentes com os trabalhadores do Estado acabaram quando o governo deixa de sentir a emergência de preparar possíveis eleições. Governar é um grande plano de comunicação, onde as personagens entram e saem do palco quando o primeiro-ministro decide – assim como só responde aos jornalistas quando isso lhe interessa. Só que não é assim. A concertação social, assim como a gestão da coisa pública, é quotidiana, cheia de emergências e contrariedades. Por não ter ido “atrás de pré-avisos de greve”, o governo foi atrás de mortes. Num dia, resolveu um problema que poderia ter sido resolvido uma semana antes, evitando uma desgraça.

Regressando ao que o Presidente disse em 2023, mas achou que não devia dizer em 2024: “Melhorar passa por reconhecer humildemente que se falha e, quando se falha, corrigir, apurar e responsabilizar”. Tudo o que Montenegro se recusa a fazer.

Obviamente, demita-a

Ao contrário do que pensaria quando liderava a oposição, o primeiro-ministro acha que “a consequência política, quando há problemas, é resolvê-los”. Só que os trágicos problemas que podem ter sido causados pela ministra já não têm solução possível. E é sobre isso e apenas isso que, neste momento, a ministra da Saúde tem de responder. Confirmando-se a causalidade entre as mortes e uma greve que poderia ter sido evitada com uma simples resposta a um mail, a consequência política é óbvia: a demissão.

Se isto fosse um episódio isolado, poderia, com bastante esforço, haver tolerância. Só que esta é a mesma ministra que, para fazer um ajuste de contas com o seu antigo chefe, foi responsável pela demissão por uma direção executiva do SNS e, com isso, por mais um verão de caos nas urgências. É responsável por irmos na terceira direção do INEM. Tirando o anúncio de medidas, que, na realidade, correspondem quase todas à transferência de funções do SNS para o privado, ainda não houve uma coisa em que se visse trabalho. É, como se sabia pela sua passagem pelo Hospital Santa Maria, onde abriu uma guerra com o serviço de obstetrícia e de onde saiu inventando uma falsa polémica com Fernando Araújo porque já contava com um lugar no Ministério, um foco de conflitos e problemas. E agora foi isto.

Marta Temido demitiu-se por causa da morte de uma grávida, quando nem os serviços falharam, nem havia qualquer responsabilidade direta ou indireta sua. Poderão dizer que havia um grande desgaste pelo tempo de mandato e a pandemia. Mas neste caso, há muito mais do que isso: os serviços falharam por responsabilidade direta e negligente da ministra e disso poderão ter resultado mortes. Não há “estado de graça” que proteja um governante disto.»


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