8.9.22

Quando Marcelo enfiou a República Portuguesa na campanha eleitoral de um quase septuagenário inseguro da sua virilidade

 


«Como toda a gente sabia, as celebrações do bicentenário da independência do Brasil não iam ser celebrações do bicentenário da independência do Brasil.

Na pior das hipóteses, iam ser um apelo velado no bas-fond bolsonarista à intervenção militar ou à subversão das instituições. Faixas pediram que o presidente demitisse ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ou que acionasse as Forças Armadas para estabelecer a ordem.

Na melhor das hipóteses, seria um momento de campanha eleitoral. “Temos pela frente uma luta do bem contra o mal, o mal que perdurou por catorze anos em nosso país, que quase quebrou nossa pátria e que agora deseja voltar à cena do crime”, disse o candidato. Já há queixas na justiça eleitoral por Bolsonaro ter usado meios públicos para fazer campanha e um evento oficial para discursar como candidato – fê-lo logo depois do desfile, num carro de som, para o mesmíssimo público.

Depois de ter feito apelos ao voto num comício financiado pelo Estado e no que devia ser uma das celebrações mais relevantes dos últimos cem anos no Brasil, o extra foi o momento confrangedor em que Bolsonaro achou que era importante dar provas vocais da sua virilidade. E, acompanhando alguns manifestantes mais próximos e mais excitados com a masculinidade do seu líder, pôs milhares de apoiantes a gritar “Imbrochável! Imbrochável! Imbrochável!” Isto depois de ter falado da sua mulher e a ter beijado.

Para os portugueses menos familiarizados com o calão brasileiro, “brochada” é não criar as condições, do lado masculino, para o desempenho eficaz do coito (sinto que conquistei um record de eufemismo). Para entrar no registo, Bolsonaro parece precisar de ajuda dos seus apoiantes. Para Presidente, segundo as sondagens, já não vai dar. Para o resto, esperemos que tenha o apoio de muitos milhares, que cada um sabe dos métodos que usa.

Tendo isto acontecido numa celebração tão simbolicamente relevante para o Brasil como o bicentenário da independência, dá alguma saudade dos velhos conservadores institucionalistas.

Este texto acabaria aqui, sinalizando a decadência onde se roja a política brasileira, em que duzentos anos de independência de uma das maiores nações do mundo servem para celebrar – ou ajudar, ou certificar – as qualidades viris de um quase septuagenário inseguro. Fico triste, mas preferia não ter de misturar o tom revisteiro que esta crónica é forçada a adotar com o nome do Chefe de Estado português. E ele lá estava, no desfile militar em Brasília onde se gritaram insultos contra Lula, mesmo antes do comício, ao lado de um homem vestido de periquito – Luciano Hang, proprietário duma das maiores redes de lojas do Brasil e promovido, no protocolo inexistente, ao nível de dois chefes de Estado, por ser chefe da claque de Bolsonaro. Portugal foi envolvido num dos momentos mais confrangedores e imorais da campanha eleitoral do Brasil.

Poderia dizer-se que Marcelo Rebelo de Sousa não sabia ao que ia. Mas sabia perfeitamente. Todos o Brasil sabia e todos os que acompanham mesmo que vagamente a política brasileira sabiam. Marcelo foi, conscientemente, ao que sabia que seria um momento de campanha. Toda a mobilização foi explicitamente feita para fazer disto o ponto de viragem da campanha de Bolsonaro. Quem lá foi – e não foram os representantes dos restantes órgãos de soberania brasileiros –, foi apoiar o candidato incumbente.

Não há festa nem festança a que não vá a Dona Constança. Nunca os presidentes de Angola vieram aos funerais dos nossos anteriores chefes de Estado, mas Marcelo foi ao de José Eduardo dos Santos, num momento especialmente complicado da política angolana. Ninguém com responsabilidades que não esteja em campanha por Jair Bolsonaro foi àquela ação de campanha trasvestida de cerimónia oficial, mas Marcelo lá esteve, para enxovalho da dignidade do Estado português – que ao enxovalho do Estado brasileiro só os brasileiros, esperemos que muito brevemente, poderão pôr fim. E era tão importante lá ir, que quase nenhum brasileiro sabia da sua presença e Bolsonaro foi se embora sem sequer se despedir. Marcelo foi só figurante de um triste espetáculo.

A hiperatividade de Marcelo às vezes é um problema, outras vezes uma vantagem. Ontem, foi uma vergonha previsível e procurada. Uma irresponsabilidade absurda. Estar presente no bicentenário era institucionalmente importante. Nestas condições, era institucionalmente inaceitável.»

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1 comments:

Niet disse...

Pr. Marcelo näo deixa cair uma oportunidade para criar um lance de promocäo mediática internacional. É mesmo obra e tudo se conjuga.Mas como diria Luther e ou Kant urge guardar
um ligeiro cepticismo face a qualquer um,seja um deus, homem ou conceito...N.