«Foram precisos quase 50 anos de democracia para que o Estado português viesse reconhecer, perante Moçambique, o “acto indesculpável que desonra a História” de Portugal, que foi o massacre de Wiriamu, um dos acontecimentos mais vergonhosos da guerra colonial.
A declaração do primeiro-ministro na sua visita a Moçambique é, por isso, histórica. “Neste ano de 2022, quase decorridos 50 anos sobre esse terrível dia 16 de Dezembro de 1972, não posso deixar aqui de evocar e de me curvar perante a memória das vítimas do massacre de Wiriamu, acto indesculpável que desonra a nossa História.”
Em Portugal abundam os traumatizados pelo fim do “Portugal do Minho a Timor” e há exemplos patéticos para ilustrar esse sofrimento, como a polémica dos arbustos da Praça do Império, que deve ter sido das coisas mais risíveis que animou nos últimos anos a sociedade portuguesa e a Câmara de Lisboa.
Lembremo-nos que a frase neo-salazarista “já fomos grandes e podemos voltar a ser” continua a ser repetida a torto e a direito e com boas intenções, sem qualquer noção de que se está implicitamente a exaltar o passado colonial. Há uns tempos, numa entrevista de vida, o chefe do Estado-Maior da Armada, o almirante Gouveia e Melo – que lidera as sondagens de potenciais candidatos a Presidente da República – disse que “viu o Império a desfazer-se” e teve uma espécie de chamamento para entrar na Marinha: “Tens que contribuir para que Portugal seja grande outra vez. Não somos grandes territorialmente, mas no mar somos gigantescos.”
Misteriosamente – ou se calhar não – o saudosismo colonial conseguiu atingir pessoas que nasceram depois da queda do Império e aquelas que eram muito crianças durante a descolonização. Mas lá está: uma geração vai sempre beber parte das suas convicções à geração anterior e se a geração que era adulta no 25 de Abril foi profundamente marcada pela ideologia salazarista, a marca não se extingue de um momento para o outro e a influência chega aos portugueses já nascidos em democracia.
Por tudo isto, é um feito notável que pela primeira vez um chefe do Governo, de visita a uma antiga colónia, tenha feito um decente mea culpa e quebrado o estado de denegação em que uma grande parte da sociedade portuguesa vive sobre os crimes da guerra colonial – ainda que a historiografia sobre o assunto já seja, nos tempos que hoje vivemos, imensa.
Não é a primeira vez que o Estado português assume um crime do passado colonial. O Presidente da República fê-lo em Fevereiro de 2018, quando “assumiu a responsabilidade” pelo massacre de Batepá, em São Tomé, quando cerca de 400 habitantes foram mortos a mando do governador colonial. Colocou uma coroa de flores no monumento ao Heróis da Liberdade e disse que “Portugal assume a sua história naquilo que tem de bom e que tem de mau, e assume nomeadamente, neste instante e neste memorial, aquilo que foi o sacrifício da vida e o desrespeito da dignidade de pessoas e comunidades”.
Hoje, parece-me quase do outro mundo aquela visita de Estado do Presidente da República a Moçambique, no ano de 2008, em que Cavaco Silva ficou quase em estado de choque quando lhe perguntei se tencionava pedir desculpa pelo massacre de Wiriamu. Cavaco estava ao lado do então Presidente moçambicano Armando Guebuza, esbugalhou os olhos, recusou pedir desculpa e desatou a contar os momentos felizes que passou em Moçambique quando, enquanto jovem alferes, esteve mobilizado para a guerra colonial: “Eu que estive aqui nesse tempo, apesar de já haver alguma instabilidade, nem isso me levou a ficar preso em Maputo [onde ficou colocado em funções administrativas]. Agarrei num carro e desbravei África.”
Nesse dia, em Maputo, tive vergonha do meu país. Ao assumir que Wiriamu foi “um acto indesculpável que desonra a nossa história”, António Costa dá um passo fundamental para quebrar a “omertà” que o Estado construiu em torno da guerra colonial.»
.
0 comments:
Enviar um comentário