«Há elementos de novidade radical na pandemia que enfrentamos. É óbvio que se as nossas sociedades não estão preparadas para gerir os riscos que conhecemos, ainda mais impreparadas estão para lidar com riscos novos. Como tem sido referido, o coronavírus é singular: tem um número de reprodução muito elevado e é seletivo.
Em parte, devíamos estar avisados: num mundo com mais trocas comerciais, maior densidade populacional e mais interligado, era inevitável que surgissem novas pandemias. Com a desflorestação e as alterações climáticas, os vírus encontraram terreno ainda mais fértil.
Mas os elementos de novidade do coronavírus não estão apenas na sua viralidade. É um vírus que se propaga num contexto social e político também ele novo, que acrescenta elementos contagiosos ao próprio Covid-19.
O natural alarme social é potenciado por redes sociais que não existiam e que são propícias a trazer à tona uma cultura de ressentimento que está muito disseminada desde a crise financeira. Por isso mesmo, na publicitação do coronavírus coexistem duas narrativas: a dos media tradicionais que vão reportando factos e a das redes sociais em que germinam notícias falsas e a ideia de que as elites estão a ocultar a extensão do fenómeno, enquanto se revelam incompetentes. Sintomaticamente, surge sempre um áudio, uma mensagem ou uma foto de alguém de “dentro” que revela a suposta verdade. Se os governos se limitarem a respostas racionais, fundadas nos conselhos dos técnicos, e não gerirem a dimensão cultural e social do fenómeno, vão falhar-nos.
Com maior fragmentação política, com redobrado ressentimento social e com serviços públicos depauperados, a crise financeira global deixou-nos à mercê de qualquer pandemia. Mas a impreparação de cada país e da Europa levará à repetição de um filme conhecido.
Os impactos do coronavírus serão por definição assimétricos. Os mais frágeis sofrerão mais: os países mais frágeis e as pessoas mais frágeis. Num primeiro momento, a reação será de comoção e de compromisso político. Mas logo evoluiremos para a responsabilização dos “incompetentes” que não foram capazes de gerir uma pandemia para a qual ninguém estaria preparado. Não demorará muito até que expiemos a culpa nos chineses que têm hábitos inaceitáveis ou nos italianos que insistem em se portar mal. Quando chegar a recessão, e com ela a crise social, os governos serão responsabilizados pela queda das economias e pelo aumento da dívida. A Europa recuará nas respostas e os partidos serão penalizados nas urnas.
No fim, sobra o paradoxo da prudência: se agirmos por excesso agora e se se revelar desnecessário, é porque enfrentámos a situação com sucesso. Se, pelo contrário, o cenário se agravar é porque devíamos ter sido mais exigentes. É um daqueles momentos em que se espera dos governos capacidade de decisão e liderança.»
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