«Ao tempo das sondagens sucede-se o tempo dos debates, que dará lugar ao tempo da campanha, que vai trazer novas sondagens, onde as intenções de voto em cada partido já permitirão fazer uma aposta firme nos vencedores. O resultado eleitoral nem é o mais importante. Tendo de fazer uma opção, sendo intrinsecamente democratas, temos de conviver bem com um resultado que seja o oposto do que desejamos. Na vitória e na derrota, o que se espera dos políticos é que cuidem da saúde da democracia. Aliás, a não ser que exista um cataclismo político, os inquiridos dão já como certa a vitória da AD, mesmo responsabilizando os partidos do governo pela crise política e apontando ao primeiro-ministro falta de transparência.
Por agora, o que há de mais interessante para ler nos estudos de opinião não são os números das intenções de voto dos partidos, nem sequer a avaliação que os portugueses fazem das competências dos candidatos a primeiro-ministro, é a pouca importância que atribuem a comportamentos que há bem pouco tempo tinham castigo garantido nas urnas. Todas as sondagens dizem que o primeiro-ministro deve explicações ao país, mas acrescentam igualmente que, mesmo não sendo um exemplo de transparência, Luís Montenegro deve continuar a governar.
Olhando à minha volta, num ecossistema que não é apenas de jornalistas e políticos, é altamente desconfortável perceber que a ética da conveniência se impôs e tudo passou a ser possível. Estabeleceu-se o direito de cada um de nós poder decidir o que é ou não é verdade. Deixou de ser um conceito objetivo e o simples aviso de que uma qualquer percepção não corresponde à realidade passou a ser visto como uma ofensa. Nesta evolução do homo sapiens, o que devia ser objectivo passou a ser passível de interpretação e o que é por natureza subjetivo deixou de ser discutível, porque a primeira consequência deste relativismo é o aumento da agressividade e a diminuição da capacidade de diálogo. Endeusamos os outros se a opinião deles confirmar a nossa e execramos quem diverge de nós.
A ética passa a ser de conveniência, quando o que é reprovável neles passa a ser justificável em nós, à luz dos princípios que criticamos nos outros. É o momento em que inundamos o espaço público com acusações aos adversários daquilo que somos e fazemos. Se todos são e se todos fazem, gera-se uma indiferença na opinião pública. Quem determina o que é bom ou mau, aceitável ou inaceitável, é quem tem o poder e a força do seu lado, seja a força militar e económica, seja a força dos votos ou dos algoritmos que ajudam a arregimentar esses votos.
O wokismo, com os seus exageros, condicionou a esquerda que colocou em segundo plano as questões económicas e o bem-estar social e, dessa forma, alimentou a extrema-direita que contaminou a direita tradicional. Hoje é a direita que é dominante e usa o poder para impor um relativismo moral em que a ética passou de moda, mas a esquerda tem de reconhecer que o wokismo, ao relativizar valores culturais em nome da tolerância absoluta e da identidade subjetiva, espoletou a reacção que vemos hoje. Parece pouco, mas um conjunto de valores comuns é tudo o que precisamos. A Democracia é muito mais que o poder do voto e vamos demorar anos, ou mesmo décadas, a perceber aquilo de que estamos a abdicar.
Todo este contexto importa para entender a importância do que se passou no Mercado do Bolhão na quarta-feira. Sou jornalista há quase 40 anos, fiz dezenas de campanhas e estive muitas vezes no Bolhão. Fico pasmado ao ouvir outros jornalistas dizer que o que aconteceu a semana passada é normal, porque todos os governos fazem campanha. É verdade, mas o que se passou no dia 2 de abril foi muito para lá de uma campanha eleitoral. Transformar um Conselho de Ministros numa arruada para decidir sobre nada, fazendo do ministro-candidato autárquico a vedeta dessa jornada, convidando militantes para abrilhantar a festa (quanto terá custado aos contribuintes?), é transformar o Estado numa agência do partido. É levar o poder para a rua, não por vontade do povo para influenciar mudanças políticas, mas por vontade dos políticos para endrominar o povo. Quem semeia ventos colhe tempestades.»
0 comments:
Enviar um comentário