12.4.24

Não se distraiam

 


«Passos Coelho saiu mais uma vez de casa num final de tarde, desta vez para ir abençoar a direita ultramontana e a sua agenda conservadora. Toda a encenação teve traços deprimentes, com um cheiro a mofo de gente assustada pelas mudanças sociais, que sonha com o regresso da dona de casa. E, enfim, Passos tende a ser apresentado, de tempos a tempos, como reserva moral da direita portuguesa.

O país franziu o sobrolho, a direita liberal mostrou o incómodo e à esquerda os sinos tocaram a rebate. Foi salutar essa multiplicação de reações.

Mas não nos enganemos. Não é uma guerra cultural que temos pela frente no ciclo político que por agora se inicia. Primeiro porque essa tentativa de criar um conflito sobre identidades e família é, pelo menos por agora, totalmente artificial e minoritária. A vida do país foi mostrando traços de transformação nos costumes e nas identidades sociais que nasceram pela mão de lutas sociais, de gente corajosa e de mudanças legislativas. O país avançou e modernizou-se. É a própria direita que prova que essa mudança é pacífica e bem-vinda na sociedade portuguesa. Temos um político que assumiu publicamente a sua homossexualidade e que é hoje Ministro dos Negócios Estrangeiros. Outros militantes destacados do (anterior) partido mais à direita, o CDS, também o assumiram com coragem no passado. Nunca mais ninguém falou disso. E bem. As mulheres portuguesas são hoje a maioria no ensino superior, há novos modelos de famílias sem dramas, e deixámos de prender as mulheres pobres que recorriam desesperadas às salas escuras do aborto clandestino. Na verdade, os dramas das mulheres portuguesas estão na discriminação salarial; nos horários e turnos que dificultam a vida familiar; nos salários baixos; e na violência cobarde que persiste exatamente nos modelos de “família tradicional”. E os problemas das famílias com a escola pública não são os direitos humanos, discutidos nas aulas de cidadania. São a falta de professores; as escolas ainda degradadas; os apoios escolares para melhorar resultados; e a inquietação de saber se haverá residências universitárias, caso os filhos tenham de ir estudar para outra cidade.

Há lutas ainda por fazer, mas não há uma ferida aberta na sociedade portuguesa sobre modelos de família ou o papel das mulheres. Por isso, a nova identidade salazarenta de Passos Coelho é apenas um exercício oportunismo político. É um político em busca de um papel e de uma agenda para o seu próprio protagonismo. Passos tem procurado persistentemente colocar-se como a figura tutelar de uma eventual aliança entre o PSD e Chega, caso ela seja essencial para que a direita se mantenha no poder. Este foi apenas mais um episódio dessa novela que, receio bem, vai continuar.

Mas nos próximos tempos, a aliança entre a direita liberal e a extrema-direita não será sobre identidades e costumes. Será sobre matérias bem mais prosaicas: trabalho e políticas sociais e económicas. No novo quadro político, o que está em debate são as questões do trabalho, dos rendimentos e dos apoios à iniciativa privada.

Dados recentes do Eurostat mostram que Portugal é hoje o segundo país da União Europeia com maior número de contratos laborais precários, e sabemos que permanece há décadas no fundo da tabela europeia dos níveis salariais. É um país em que o trabalho é barato – e isso explica muitas das dificuldades da economia portuguesa e da emigração dos mais jovens. Portanto, o que interessa saber é se o PSD se vai apoiar na extrema-direita para reforçar uma legislação laboral que promove essa precariedade e manter os entraves à contratação colectiva. Saber se tenciona travar a subida do salário mínimo. E, agora que se esboça a nova teoria de que afinal o excedente orçamental deixado pelo PS é uma maldição, saber se os trabalhadores com funções públicas continuarão em perda salarial desde que a Troika aterrou no país.

E há uma segunda dimensão: saber se as alterações nas políticas sociais servem de alavanca a novas rentabilidades oferecidas ao sector privado, a serem asseguradas por contratos com o Estado. Isto é, trata-se de saber se o dinheiro dos contribuintes será encaminhado não para os serviços públicos, mas para o sector privado da saúde ou da educação. Saber se se avança com a privatização parcial da segurança social; se o IRS das famílias vai pagar as rendas galopantes dos senhorios; e se o orçamento das obras públicas – e o novo aeroporto – vão servir para assegurar lucros fáceis sem necessidade de investimento, inovação ou competitividade.

Nestas questões, o alinhamento entre PSD e Chega não titubeia, nem tropeça. Até arrisco uma hipótese: quanto maior for a contestação a essa agenda de manutenção de baixos salários e rentabilidades asseguradas, mais vozes se levantarão no campo da direita querendo fabricar guerras de costumes e identidades.

Mas o ciclo que temos pela frente é sobre desigualdade social. É uma disputa sobre a distribuição de rendimentos e da riqueza criada na economia: ou vai para aumentar os salários ou vai para assegurar rentabilidades sem risco. Não se distraiam.»

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