«No passado dia 6 de Abril saiu à rua a Caminhada pela Vida. Organizada anualmente pela Federação pela Vida, esta manifestação dá visibilidade aos movimentos conservadores em defesa da família tradicional e contra o aborto legal e a eutanásia.
O Manifesto Vida 24 é “um manifesto político que espelha a visão da Federação pela Vida para 2024”, tendo em vista a realização de eleições legislativas e europeias. Ao contrário do discurso tradicionalmente associado aos ativistas antiaborto, o manifesto não apela a qualquer argumento religioso, nem apelida de assassina quem escolhe abortar. Ao invés, a Federação pela Vida apropria-se da linguagem do movimento feminista e dos direitos humanos, definindo o aborto “uma arma da opressão das mulheres”.
Consciente de que a opinião pública é cada vez mais favorável à liberdade de escolha das mulheres, o movimento antiaborto foi forçado a adaptar-se, tendo desenvolvido argumentos aparentemente pró-mulher na defesa da criminalização do aborto. Estes argumentos assentam frequentemente na premissa de que o aborto põe em risco a saúde das mulheres e a sua liberdade.
O aborto é representado como inerentemente traumático, comportando riscos elevados para a saúde física e mental de quem aborta, apesar de este procedimento ser menos perigoso do que levar uma gravidez até ao fim. A criminalização aparece assim como uma exigência de saúde pública, que desvaloriza o papel das mulheres enquanto decisoras e as considera incapazes de consentir de forma informada num procedimento médico.
A IVG (interrupção voluntária da gravidez) é ainda vista como uma afronta à liberdade das mulheres, que, de acordo com os ativistas antiaborto, são forçadas a abortar devido às suas condições económicas e por pressão de familiares, companheiros e até profissionais de saúde.
A Federação pela Vida denuncia o aborto como uma arma da opressão das mulheres, argumentando que a maioria aborta por viver em situação de pobreza, sem apoio familiar ou estatal. Não há nada que indique que tal seja verdade, nem a federação faz qualquer referência a dados que o comprovem. Aliás, de acordo com o relatório mais recente da Direção-Geral da Saúde, apenas 14,6% das mulheres que abortaram por opção nas primeiras dez semanas de gravidez estavam desempregadas.
Este argumento tem por base a crença sexista de que é natural para uma mulher aspirar à maternidade e, portanto, nenhuma mulher deseja realmente abortar. Apenas abortam as mulheres em situação de vulnerabilidade, que devem ser incentivadas a manter a gestação.
Os argumentos antiaborto baseados no género e na linguagem dos direitos humanos não estão apenas presentes na propaganda política de movimentos conservadores. Encontramo-los em ações de strategic litigation nos tribunais, em relatórios-sombra de ONG antiaborto às Nações Unidas e nos discursos de deputados da direita no Parlamento Europeu.
Hoje, mais do que nunca, é preciso dizê-lo: o aborto é normal, seguro e essencial para a liberdade e autodeterminação das mulheres.
Existiria alguma conotação negativa associada ao aborto, se o papel primário das mulheres não fosse o da maternidade? Teria alguma mulher sentimentos de culpa por abortar, se não fosse estigmatizante fazê-lo?
Está na hora de parar de defender o aborto como um mal necessário, que se quer legal mas raro, e passar a defendê-lo por aquilo que é: uma ferramenta para a realização dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Nós, feministas, temos o dever do contraditório. O dever de defender a educação sexual plena, que inclua os temas da contraceção e dos métodos disponíveis para a IVG. Temos o dever de dizer que nenhuma mulher é oprimida por poder abortar e o dever de denunciar a apropriação da nossa luta, da nossa linguagem e dos nossos valores pela direita iliberal.
Nestas eleições europeias, se a Federação pela Vida pergunta aos deputados se estão “contra o alargamento dos prazos legais do aborto”, perguntemos também: estarão do nosso lado na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres?»
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