13.4.24

Portugal está mal

 


«Quase ninguém tem saudades do Governo do PS e quase ninguém tem especial entusiasmo com o Governo do PSD-CDS. Claro que há sempre um grupo de fãs que contraria esta apreciação, mas são tão equivalentes que se anulam um ao outro. A realidade é que apenas os eleitores do Chega têm alguma coisa para celebrar, porque na prática são os únicos que podem dizer que ganharam nas eleições. A sensação de cansaço existe e é reforçada pela consciência de que o país está ingovernável.

Para utilizarmos a classificação tradicional de esquerda-direita-centro, que só o arcaísmo da política portuguesa permite ser instrumental, o centro está em grande parte destruído, a esquerda está em refluxo e a direita está em ascensão. Só que a direita que está em ascensão está bloqueada porque o seu sector mais dinâmico, o Chega, não pode governar e o que acedeu ao Governo está impotente, porque, se fizer o que quer, cai. Todos sabem que a questão das eleições a prazo é quase inevitável, e ninguém actua sem ter isso em consideração. É um jogo de sombras em que quase tudo o que se diz é ficcional e a probabilidade de sermos governados não pelo mérito das medidas, mas pelo seu papel na manutenção do Governo ou na eficácia da oposição é total.

A situação portuguesa não resulta apenas da acção dos políticos nacionais, porque processos idênticos se verificam noutras democracias. No caso português, um dos aspectos é a destruição do centro político, que é ao mesmo tempo uma autodestruição e o resultado de um processo de radicalização com outros protagonistas, principalmente a nova direita populista. Este efeito é potenciado pela subordinação do contínuo político-mediático aos critérios de audiências e da nova politização da imprensa, rádio e televisão.

Essa direita que cresceu não é “fascista”, como erradamente é classificada, não é o renascer de qualquer movimento antigo, embora haja países como a França, a Itália e a Espanha onde tal sucede, mas uma nova entidade que vai buscar ao populismo a sua força, tem uma agenda mais que conservadora, reaccionária, mas que acima de tudo mobiliza sentimentos de ressentimento, rejeição, desapossamento, perda de dignidade, desalento e desesperança que nasceram no terreno da democracia. Estes não são inteiramente explicáveis pelo marxismo, mas podem ser percebidos em parte por uma nova forma de “luta de classes”. O problema é que as “classes” são outras e a “luta” é diferente e há uma forte componente daquilo a que os marxistas chamavam “superestrutura”, autónoma da “infra-estrutura” nos seus mecanismos. O que faz crescer o Chega não é a perda de rendimentos dos seus eleitores, mas a ameaça da perda da identidade percebida, como “portugueses”, como “trabalhadores”, como “patrões”, como machos e brancos e vagamente cristãos.

A diferença está na forma do sentimento subjectivo, mais do que objectivo. Muitas vezes não se trata de perda de rendimentos, mas mais de perda de estatuto. Não é a mesma coisa ser operário ou ser estafeta ou criado de café, ser operária ou doméstica, ser gaspeadeira ou empregada de balcão de supermercado, ser militar ou segurança, principalmente quando se desejava ser uma coisa, ou se tenha sido outra coisa e se seja agora outra, com menos direitos, precários, e mais dependente de um patrão ou de uma grande empresa anónima e distante, ou “trabalhar” no sentido cada vez mais antigo do termo. E à sua volta, nos cafés, nas conversas, sentados num jardim, ou num escritório ou repartição, ou no meio dos violentos e do bullying nas escolas, ferve-se de raiva contra os “outros” e os “políticos” que lhes dão a “eles” o que nos negam. E a radicalização funciona como o horror ao vácuo, ou como a água e a gravidade, escorre para onde se deixou ficar um vazio, para o Chega e em parte para o PSD.

A destruição do centro em Portugal verifica-se essencialmente na mutação do aparelho do PSD, mais do que em muitos dos seus militantes. Muitos membros do PSD não fazem a mínima ideia de como a elite do partido está hoje longe do pensamento genético do partido, do pensamento de Sá Carneiro. Sá Carneiro não considerava importante a existência de um grande partido ou de uma frente de direita, bem pelo contrário, via isso como um empobrecimento, para usar um eufemismo, e um risco do sistema democrático, e disse-o explicitamente. Uma das razões por que a actual AD nada tem a ver com a original não é apenas o patético PPM dos nossos dias, que é conveniente esconder num armário fechado, mas a vontade de Sá Carneiro de incluir o PS no projecto inicial da AD, que, mais do que um programa económico e social, tinha um programa institucional centrado na democratização do regime. A intenção falhou e por isso estavam lá os Reformadores, e um PPM mais revolucionário nas suas causas até que o PSD. Mas a preocupação que fracassou não foi a de fazer um “bloco central”, mas uma força de centro, centro-direita e centro-esquerda, mais desta última do que da primeira. De todas as tentativas ulteriores de colocar o PSD neste local, apenas uma teve sucesso parcial, a de Cavaco Silva, sendo que quer Manuela Ferreira Leite quer Rui Rio falharam.

A destruição do centro teve também como consequência a sua ocupação pelo PS, primeiro com Sócrates e depois Costa, o que fragilizou a esquerda, com excepção do período da “geringonça”. Preso nas suas ambiguidades, nem carne nem peixe, o PS não consegue travar a direita, nem na versão Chega, nem na AD 2.0.

Tudo isto resultou numa combinação de falta de vontade reformista e de bloqueamento reformista, quer pelo medo de reformas sérias dos dois grandes partidos, quer pela sua fragilização e subordinação não ao conteúdo das políticas, mas à sua mediatização. Medo de mexer alguma coisa, medo da comunicação social, medo de acreditar nalguma coisa, medo de perder estatuto e prebendas, défice de coragem política para resistir. O impasse político actual vem também da destruição do terreno central.

O país está mal porque tudo isto é o exacto oposto do que é necessário nos dias de hoje. Sem profundas mudanças nas oligarquias partidárias, PSD e PS, não se vai a lado nenhum e essas mudanças nos partidos não se dão porque não existem forças endógenas para o conseguir. Quem mais precisa dessa força é o centro político, e o partido onde ela é mais necessária é o PSD.»

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