3.1.24

You did it again, MP

 


«Depois da notícia aparecer nos jornais, a Procuradoria-Geral da República confirmou estar a fazer uma investigação relacionada com a construção da casa de Luís Montenegro em Espinho. O mistério é, pelo menos quanto à parte que foi conhecida, o que raio é preciso investigar. Em menos de um dia Tiago Mota Saraiva, insuspeito de simpatia pelo PSD, esclareceu que casas construídas em Área de Reabilitação Urbana (ARU) têm direito ao benefício no IVA. Bastava confirmar a data da aprovação do ARU do litoral de Espinho e fazer as contas. Nem uma tarde de trabalho.

Apesar da evidente a diferença de tratamento mediático e judicial em relação às várias suspeitas que surgiram contra Passos Coelho, nunca comprei teorias de conspirações e cabalas contra o PS. O PS tem sido o alvo porque está há mais tempo no poder e tê-lo sob suspeita permanente constrange qualquer mudança que volte a dar aos procuradores do Ministério Público o poder que o espírito da nossa lei realmente lhes atribui. A isto juntam-se doses inacreditáveis de incompetência, a leviandade que resulta da falta de “mundo” (evidente na leitura que fazem de alguns comportamentos de quem tem funções executivas) e uma cultura justicialista que atravessa de forma crescente toda a sociedade, dos agentes da justiça à comunicação social.

Da mesma forma que a PSP acha que tem direito a punir, com violência física, os que considera terem comportamentos criminosos, o MP acha que pode julgar e condenar políticos na praça pública. Há, nas sociedades democráticas (nas outras isto nem é debate), um abandalhamento institucional que é causa e consequência da degradação da democracia. O mesmo abandalhamento que leva uma juíza a insultar um possível futuro primeiro-ministro no seu Facebook e as pessoas, desconhecedoras do dever de recato (e até proibição de atividade partidária) dos juízes a achar isso absolutamente normal.

Não digo que Luís Montenegro não tenha de vir a dar explicações sobre a sua casa ou outros sinais exteriores de riqueza que possa ter dificuldade em justificar, e onde entram os ajustes diretos que fez com a Câmara Municipal de Espinho, autarquia onde foi vereador e presidente da Assembleia Municipal e que era dirigida pela estrutura local do PSD de que sempre fez parte. Mas parece haver uma confusão entre o escrutínio prévio de candidatos a cargos relevantes. Mas o “vetting”, comum nos Estados Unidos e na União Europeia, é um processo político. Feito pelos pares ou pela comunicação social. Não é essa a função do Ministério Público. Essa investiga suspeitas plausíveis de crimes sem destruir, de preferência, a reputação dos que investiga antes de alguma evidência sólida existir.

A principal questão aqui está, antes de tudo, no timing. A enorme e luxuosa casa de Montenegro em Espinho é tema na comunicação social desde maio. Se o MP achava que havia material, fazia-o na altura. Fazê-lo em vésperas de eleições, na provável expectativa de não chegar a qualquer conclusão antes das eleições, é mais uma acha para a fogueira que acendeu a 7 de novembro.

Já se percebeu qual é a tática política que se tem vindo a vulgarizar: uma denúncia anónima (não aceitáveis pela lei tributária), quase sempre com origem política, “obriga” o MP a investigar e “obriga” a comunicação social a noticiá-lo. E assim, sem fonte conhecida, mas com o reforço da credibilidade de uma investigação, se espalha a suspeita. Para quê escrever numa rede social, correndo o risco de ser judicialmente punido, se o MP pode ser usado para o mesmo efeito e sem risco?

A demissão de António Costa foi um repto ao Ministério Público: tem de se tornar mais exigente consigo mesmo e com os efeitos da leviandade com que dirige as investigações que tem de fazer. A resposta não pode ser desatar a investigar todos os líderes para distribuir o descrédito da política de forma mais equilibrada. Tem de ser a de se exigir mínimos de responsabilidade. Pela primeira vez – pela desproporção entre meios de investigação, dano causado à sociedade e suspeitas que estão em causa – o bullying de alguns setores mais engajados sobre o poder político teve um efeito boomerang. Seria bom alguém aprender alguma coisa com isso no Ministério Público.

Dirão que estou a tentar desacreditar o Ministério Público. Quem está a desacreditar o Ministério Público é quem, dentro dele, acha que a sua função é "moralizar" o sistema e não, apenas e só, investigar crimes concretos. É quem criou as condições para ser instrumental para campanha políticas que visam, essas sim, desacreditar a democracia. Nesse sentido, estou empenhado em combater a deriva justicialista de uma parte dos agentes de justiça. Não é em defesa deste ou daquele partido que estou empenhado nisto. É em defesa da democracia.

Não é por ser eticamente mais irrepreensível que a extrema-direita ganha com tudo isto. Pelo contrário, ela sempre foi o esgoto moral da política. É por ser, também ela, inimiga da democracia e do Estado de Direito. O justicialismo rende votos nas urnas e leitores a comentadores menos exigentes consigo mesmos. Mas nunca reduziu a corrupção. E sempre foi eficaz no enfraquecimento das liberdades cívicas e da democracia.

Depois do que aconteceu a 7 de novembro, todos os democratas têm o dever dar um murro na mesa, exigindo que o MP seja, como a lei determina, um órgão autónomo (é dos mais autónomos da Europa), mas com organização hierárquica, pondo fim ao equívoco que faz alguns procuradores julgarem-se equiparados a juízes e travando a infiltração antidemocrática no Ministério Público. Ou o fazemos, ou acabaremos por nos transformar no Brasil, onde a justiça não passa de um instrumento de luta política, desacreditada, à vez, por uns e por outros.»

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