6.1.24

A destruição da razão

 


«Há muitos anos que escrevo sobre um dos factores que penso estar na origem da crise das democracias, o domínio da política democrática pela sua transformação num contínuo político-mediático, que diminui a autonomia da decisão política e a torna cada vez mais dependente dos mecanismos da comunicação social e da sua evolução. Seguindo as tendências actuais, da ignorância agressiva, à culpabilidade afectiva, à colocação da racionalidade como uma coisa do passado e de velhos, sem capacidade de competir com o glamour da superficialidade, tudo puxando para baixo, a política foi pelo mesmo caminho de vulgaridade e comodismo.

Isso afecta a qualidade da democracia, e o contínuo político-mediático muda o carácter daquilo a que chamávamos jornalismo. Não adianta virem-me dizer que essa relação existiu desde sempre em democracia, porque a resposta é não.

Na forma actual, é um fenómeno recente porque não temos, de um lado a política, os partidos, os políticos e, do outro, os jornais, a rádio e a televisão, influenciando-se mutuamente pela mediação da chamada “opinião pública”, mas apenas um lado, o sistema político-mediático, em que cada vez mais os factos, as opiniões, as interpretações são moldados por mecanismos mediáticos em que participam políticos e jornalistas, cada vez mais com uma cultura de acção semelhante e dependente de efeitos comunicacionais tais como a novidade, o timing, o tipo de resposta, a rapidez, a frase assassina, a falta de estudo e de rigor. As redes sociais e novas formas de acesso àquilo que passa por ser informação, mas que é pouco mais do que entretenimento afectivo, apagaram o ethos e o logos, a favor do pathos.

Mergulhadas numa pasta emotiva e lúdica, as pessoas são mais pobres na cabeça e remediadas no corpo. E como há quem saiba aproveitar-se disto, são usadas e perdem a liberdade de decidir. Isso aproxima o contínuo político-mediático de formas modernas de propaganda, chamada agora marketing político, em que, de novo, mais uma vez, a principal perda é a da autonomia da política, mas também do jornalismo. E facilita a manipulação por interesses sociais, económicos e culturais, nacionais e geopolíticos. A interferência russa nas eleições americanas de 2016 e no “Brexit”, o papel de empresas como a Cambridge Analitics, fornecendo estudos que permitem manipulações de grupos seleccionados, são mais a regra do que a excepção, e esse mundo só se combate pela cultura, pelo saber, e pela firmeza na acção.

O que se passa em Portugal, um pouco como na Europa, tem relação directa com o alimentar do populismo. Sim, os governos fazem asneiras, há políticos corruptos e apanhados em mentiras, tudo isto é verdade. Têm uma enorme responsabilidade. Mas nada disso seria tão eficaz a alimentar o populismo sem a existência deste contínuo político-mediático que produz a chuva de migalhas que alimenta a extrema-direita.

A informação torna-se muito pobre, a manipulação muita. Isto permite a quem tenha meios e recursos recorrer a profissionais da desinformação ou, no caso dos Estados, a serviços secretos, para obter resultados usando todas as técnicas, das fake news à inteligência artificial, para moldar segundo os seus interesses a opinião pública, logo, o voto.

No caso português, a dominação da vida mediática pela direita política não é de agora. Embora se continue a dizer que a maioria dos jornalistas são de esquerda, isso tem um pequeno papel face àquilo a que antes se chamava as ideias dominantes. Uma parte da nossa esquerda abandonou a luta social em nome das modas “fracturantes”, falando assim para pequenas minorias intelectuais urbanas, fazendo um enorme serviço à direita canalizando para as “guerras culturais” de elite a sua energia e deixando os milhões de portugueses, que são pobres, excluídos e explorados, fora de moda, o que também significa apagá-los da sua condição existencial num limbo comunicacional como “pobres, sujos e maus”. Esses portugueses não brilham no escuro como as novas vedetas do neocapitalismo triunfante, como as start-ups, os “unicórnios”, os empreendedores, os nerds das novas tecnologias, as influencers, heróis do jetset e das redes sociais. O resultado é que muitas ideias da direita política ficaram na moda, dominaram jornais e televisões, num terrível mecanismo de não-pensamento e de ignorância.

Veja-se um exemplo dos anos da troika, em que a chamada TINA, a ideia de que não havia alternativa a uma política de austeridade tendo como alvos os “de baixo”, se tornou na vulgata ideológica que políticos, jornalistas, lobistas repetiram da direita à esquerda. Quando alguém apresentava uma proposta, a primeira pergunta era “quanto custa?”, em vez de ser “qual o mérito da proposta?”, mesmo que custasse algum dinheiro. E poderia também ser “quem é que a vai pagar?”. “Quanto custa?” é uma pergunta que tem sentido, principalmente em tempos de escassez, mas teria de ser sempre a segunda pergunta, e não a primeira. A partir daqui estamos num terreno de legitimação da TINA, que depois se somava à apresentação selectiva de alvos nas despesas de segurança social, nos pensionistas e nos idosos, a “peste grisalha” que ameaçava o futuro dos jovens.

Nos dias de hoje, o contínuo político-mediático é um excelente instrumento para a manipulação do justicialismo, que sabe para quem orientar as suas fugas de informação – jornalistas e órgãos de comunicação –, escolhendo o tempo dessas fugas para obter ou efeitos políticos ou efeitos de autojustificação dos seus actos quando fez asneiras, mas acima de tudo escolhendo os interlocutores das fugas que sabe que lhes darão de imediato a máxima publicidade e as apontarão aos alvos escolhidos. Antes de alguém parar para pensar e ver o que há de substancial, já títulos e frases estão por todo o lado e a sua impressão não é apagável.

É que, no passado, a política em democracia era suposto servir o bem-estar das pessoas, e o jornalismo a informação e o escrutínio do poder. Hoje, o sistema político-mediático serve interesses e intenções dos poderosos, mas deixa as pessoas comuns com menos liberdade e menos poder. É, para alguns, trabalho bem feito. Para a democracia, é péssimo.»

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