«A minha paixão pelo futebol não é recente, não é de moda, não é fruto do acaso. Vem de sempre, do mais longe da infância, manteve-se sempre constante e alimentou-se sempre de um genuíno prazer pela estética e pela geometria do jogo: até mesmo ver miúdos a jogar na areia de uma praia me cativa, não apenas ver jogar Messi ou Ronaldo. Mas, hoje em dia, dou por mim a ficar cada vez mais farto de futebol. O jogo, em si mesmo, é cada vez mais desinteressante, a partir do momento em que o seu objectivo principal — marcar golos — foi substituído pelo de não deixar o adversário marcar golos. O futebol-arte foi substituído pelo futebol-indústria, no qual desaguaram em força todas as máfias de dinheiro obscuro do mundo — da Rússia, do Médio Oriente, da Ásia — que forçaram o espectáculo futebolístico até aos limites: mais jogos, mais competições, mais horas de transmissões televisivas de jogos e debates sobre jogos, e jogadores pagos pornograficamente, com a contrapartida de jogarem até à exaustão. Todos os envolvidos no negócio — donos e administradores dos clubes, técnicos, jogadores, programadores de televisão, dirigentes das Federações, da UEFA e da FIFA — sabem que a corda está esticada até ao limite, mas apostam na infinitude de um filão que não se esgotará nunca, pois acreditam que não se esgotará nunca, passando de geração em geração a paixão do público por este jogo. E, por isso, não é possível abrandar nem conter a ambição — daí a recente tentativa, por enquanto frustrada, de 12 dos mais ricos clubes europeus quererem ainda enxertar uma outra competição, só para eles, às já existentes. E, quando se paga seis, dez, vinte milhões por ano a um jogador, e mais do que isso a um treinador, perder não é opção. Daí que todos os treinadores, sem excepção, cuidem hoje, primeiro que tudo, de preparar as suas equipas para não perder. Os das mais ricas preparam-nas também e depois, para tentar ganhar; os outros, apenas para defender. O resultado à vista é que todas as equipas acabam a jogar da mesma maneira, um futebol previsível, cauteloso, aborrecido, destinado a matar à nascença o improviso e o génio. Bom exemplo disso é a saída de bola dos guarda-redes, actualmente a jogada mais ensaiada pelos treinadores, a mais repetitiva e a mais desinteressante. Aliás, tenho para mim e desde há muito, que, com honrosas excepções — como um padre-treinador que tive aos 15 anos — os treinadores só servem para complicar o que é simples. E quando vieram acrescentar-lhes o VAR (hoje, o personagem principal e invisível do jogo) e toda uma teia de intrincadas interpretações técnico-jurídicas sobre as 13 leis do futebol — ainda por cima, mudando todos os anos — este jogo, outrora fascinante, vai-se tornando cada vez mais aborrecido.
Mas se o futebol é cada vez mais aborrecido, o espaço que ele ocupa nas nossas vidas — ou naquilo que nos propõem que sejam as nossas vidas — é cada vez maior. Isso não acontece por acaso, mas porque os biliões investidos neste negócio precisam de retorno: precisam de público, de atenção mediática, de espaço publicitário, e tudo isso está interligado. Convencer cada vez mais pessoas de que o futebol é parte essencial da vida delas é a chave do negócio. Atrair a atenção de novos públicos, sem distinção de género, de condição social, de origem geográfica. O futebol, repetem-nos, é a única coisa que une todos os povos do mundo, que estabelece tréguas entre as guerras, que esbate as diferenças, que combate o racismo e mais uma série de causas bonitas. Era bom que assim fosse e não a alienação de massas, sabiamente promovida pelo futebol — em cuja sombra um exército de privilegiados, das Federações nacio¬nais, dos clubes, da UEFA e da FIFA, acumulam fortunas e chantageiam governos.
Isso é conseguido, obviamente, graças ao empenho e conivência do jornalismo e, em particular, das televisões. Sem a comunicação social e sem as televisões, a alienação — ou as audiências, se assim lhes preferirem chamar — não atingiriam o patamar que hoje atingiram e o negócio afundar-se-ia. É um pouco assim em todos os países, mas evidentemente que é tanto pior quanto mais subdesenvolvido culturalmente é um país. E Portugal é disso um exemplo eloquente.
Em Portugal e até ao 25 de Abril, o futebol ocupou um papel tão importante quanto tudo o resto ou não tinha importância ou não era consentido — essa foi a missão que lhe atribuiu o Estado Novo. Com a democracia, outras coisas, mais importantes, mais urgentes e novas, passaram a ocupar-nos e o futebol passou para segundo plano. Até que (a sondagem do Expresso da semana passada confirma-o) os portugueses, que confundem democracia com bem-estar, começaram a suspirar por outro ditador ou autocrata, que restaurasse o “espírito pátrio” e nos devolvesse o orgulho nacional perdido. Encontraram-no no Euro de 2004 e na figura importada de Luis Filipe Scolari, um homem de extrema-direita, que chegou, mediu a cena e soube tirar todo o partido dela. Convenceu os portugueses que o Euro — no qual investimos milhões a perder de vista — era uma oportunidade única de restaurar a grandeza da pátria por via do futebol, afinal de contas a nossa melhor, se não única, valência. O resto é história: dez milhões menos um português (eu) passaram um mês a cantar o hino e vestidos com as horrendas cores da bandeira, a vitoriar os novos heróis do mar que acabaram derrotados por uma selecção medíocre, nas nossas barbas.
Com alguém, não charlatão e mais competente que Scolari, lá acabámos por ser campeões europeus em 2016 em Paris, para justa desforra dos nossos emigrantes e porque, por algum estranho mistério genético, temos, de facto, sucessivas gerações de gente com especial talento para o futebol. Mas o resto, o lado mau da coisa, manteve-se inalterável: o futebol continuou a passar à frente de tudo na agenda editorial das televisões, a Selecção continuou a confundir-se com a pátria e os jogadores com os navegadores de Quinhentos, e gritar por eles a plenos pulmões é sinal infalível de patriotismo. Mesmo que saibamos que aqueles heróis tatuados e de aberrantes penteados fazem o que podem para não pagar impostos à pátria, passam férias no Dubai e nem desconfiam quem foi Fernando Pessoa ou Eça de Queirós. Mas ai de quem se atreva a não saber todos os nomes deles, a não tremer de emoção quando os veem cantar o hino, quando veem as televisões seguir em directo o autocarro que os transporta para o estádio ou o avião que levanta voo rumo à Hungria, ou a não acompanhar ao minuto os relatos dos enviados especiais a Budapeste, plantados à porta do hotel da Selecção, a dar conta, em tom dramático, quais Peros Vaz de Caminha usando as novas tecnologias para informar D. Manuel do achamento de Vera Cruz, de que Fernando Santos foi avistado a ausentar-se, talvez para ir à missa!
E, porém, somos um pequeno país, mas temos alguns notáveis escritores, pintores, arquitectos, cientistas, médicos, investigadores, gente que se bate para defender o nosso património cultural, a nossa paisagem, a nossa língua. Mas nunca o hino toca por eles, nunca a bandeira sobe por eles, nunca as televisões e o povo aguardam por eles no aeroporto. Mas o que havia de esperar de diferente quando o próprio Presidente da República (que, por mais que finja, pouco percebe de futebol), interrogado sobre a situação cada vez mais preocupante da pandemia em Lisboa, declara isto: “Agora, temos de estar focados, e estamos todos focados — o senhor primeiro-ministro, o senhor presidente da Assembleia da República, eu próprio, todos os portugueses — no Europeu de Futebol”? Depois de ouvir isto, só me ocorre um desejo: oxalá não sejamos campeões, nem próximo disso! Porque, com Marcelo a comandar os festejos, nova onda de infecções, como a que foi causada pelos festejos do Sporting, vai tornar Lisboa inabitável. Graças ao futebol.
Eu, adepto de toda a vida do futebol, estou farto da ditadura do futebol! Queria que o futebol fosse apenas aquilo que devia ser: uma parte de descompressão e alegria nas nossas vidas e na vida do nosso país. E não a parte mais importante das nossas vidas e da existência de Portugal. Futebol, patriotismo e saloísmo são três coisas diversas entre si. Era bom que fizéssemos um esforço para não as confundirmos todas numa só.»
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