17.6.21

No comboio descendente, vai tudo à gargalhada



 

«Já toda a gente reparou na recente e vertiginosa mudança nos modos de comunicação, através da banalização da boçalidade. Um chefe de um partido sugere levemente que o ministro devia ser decapitado, os liberais treinam os meninos a atirar setas à cara dos adversários (com a natural exceção da do chefe do partido que acha que o ministro deve ser decapitado), a candidata laranja à Amadora quer exterminar um partido e é aplaudida pela turba da sede, um cordato e elegante administrador da Gulbenkian solta o animal feroz que afinal morava dentro de si, junta-se uma fronda para assegurar que há um “fundo de verdade” em que os comunistas comem crianças, um ministro, outro que não o decapitável, convoca raios e coriscos por lhe terem lembrado a borla fiscal das barragens, o bastonário de uma ordem profissional indigna-se para assegurar que umas casas de uma urbanização aparentemente não licenciada são alugadas por cem mil euros por mês na emergência da covid em Odemira, e quantos mais exemplos são necessários para dizer desta mudança que é tribalização de espaços públicos?

Há duas formas de menorizar este rápido deslizar da linguagem. Uma é que já foi assim, talvez mais vezes do que as que ocorrem à nossa memória recente: no PREC foi à bomba e fogo posto, algumas vozes incendiavam a pradaria, houve mesmo um candidato presidencial da direita unida que exibia a distinção de ter dirigido um campo de concentração durante a ditadura, houve programas de televisão cortados, houve jornalistas a responder em tribunal por discutirem planeamento familiar em antena, houve governo que correu com Marcelo do seu comentário televisivo, houve ameaça de censura a Saramago, houve Pides condecorados. Já houve o mal e a caramunha. E, se é certo que qualquer período de instabilidade ou de grande disputa aquece os termómetros da palavra, também agora estamos em vésperas de eleições, autárquicas que sejam, mas vão definir o mapa da direita e revelar-lhe se tem alguma chance para os próximos anos, o pote está a ficar muito distante. A segunda forma de relativizar esta temperatura é lembrar que até somos de brandos costumes: em contrapartida, em Espanha não houve um único dia do seu mandato como ministro em que Pablo Iglesias não tivesse uma manifestação da extrema-direita instalada à porta da casa onde vive com os seus filhos.

Permita-me dizer-lhe que estes dois argumentos são mancos. Há pior e até já houve pior, mas nada disso explica este comboio descendente. Vale a pena compreendê-lo, porque isto vai durar mais do que o breve campeonato europeu de futebol: o que alicerça a degradação da linguagem, poluindo a política para esvaziar os espaços de conversação e de enunciado de posições e propostas, é uma combinação entre a concorrência feroz à direita (o que é novo e notável, desde há quarenta anos que não surgiam novos partidos eleitoralmente viáveis nesta ala e, pela primeira vez desde o 25 de Abril, podemos estar nas vésperas do desaparecimento de um dos partidos da Constituinte) e o predomínio de novos modos de comunicação que são impulsionadores da necropolítica.

A mudança que as redes sociais produzem não é a difusão dos memes ou o uso do sarcasmo, aliás desejável nos debates democráticos que, como lembrava um editorialista, não têm por que ser “amorfos”; o seu efeito é, antes, a intoxicação intensa. A linguagem é usada neste terreno para uma função predominante: a blindagem, ou seja, para deixar de comunicar, para se tornar opaca e intraduzível, para fechar os seus seguidores numa redoma inexpugnável, protegida por barreiras de ódio. Isso é possível precisamente porque vivemos em hipercomunicação, com o ecrã a colonizar muitas horas do nosso dia, e porque a sociabilidade passou a ser esta forma de encriptação que cria símbolos, ícones e liturgias na gritaria, forjando identidades fictícias e obediências sectárias. Quanto mais comunicante for a incomunicabilidade, maior o seu sucesso. É por isso que a figura típica deste mundo é o bufão. E o bufão é quem, para aplicar o poema de Fernando Pessoa, vai no comboio descendente à gargalhada, criando um espetáculo em que vão “uns por verem rir os outros/ E os outros sem ser por nada”, “uns calados para os outros/E os outros a dar-lhes trela/(…) Mas que grande reinação”.

Não é tudo novo? Não. Mas já se alcandorou ao esplendor de sugerir a decapitação de um adversário. Não é fala de Estado Islâmico, é mesmo a direita portuguesa.»

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