16.6.21

Passaporte para o atalho

 


«Apesar dos sustos e das variantes, o mundo rico prepara-se para integrar a covid na normalidade das nossas vidas como integramos tantos outros riscos. Mesmo sem o levantamento de patentes, o processo de vacinação avança e a imunidade de grupo está a poucos meses. Como parte do regresso à normalidade, vem aí o Certificado Digital Europeu. Só que, ao criar o passaporte verde, a Comissão Europeia não o regulou. Cada país faz o que entender, com os critérios e medidas que quiser.

Para além de muitas aberrações e de uma total imprevisibilidade, a pandemia passou a ser usada como instrumento de competição económica e arma política. E em vez do regresso de fronteiras com regras conhecidas, vivemos ao gosto da arbitrariedade. Schengen sobrevive para os que vêm de fora. Morreu para a liberdade de movimentos internos, serve como muralha para manter a muralha externa. E os que estão para lá dessa muralha foram os principais prejudicados pela defesa do negócio das farmacêuticas, que tenderá a piorar.

O Parlamento Europeu aprovou uma recomendação para a Comissão Europeia fazer o que se recusa, por preferir defender os interesses de um país produtor de vacinas: a suspensão temporária de patentes, que a lei internacional permite e que foi recomendada pela OMS, ONU, Médicos Sem Fronteiras, dezenas de especialistas e prémios Nobel. Os países ricos safaram-se sem este passo, à custa do resto do mundo. Os EUA têm mais de metade da população com pelo menos uma vacina, a Europa mais de um terço. Mas África está pouco acima dos 2%, com vários países próximos de zero. Não tendo garantido o levantamento da patente e as condições para uma vacinação global, o confortável condomínio terá de fechar ainda mais os portões, instalar câmaras e contratar vigilantes, em vez de cuidar do bairro. Este passaporte acabará por servir para isso.

Nada contra a sua existência. Quando viajamos de e para vários países é obrigatório um certificado de vacinação para a febre amarela, por exemplo. Mas isso só é aceitável quando todos se podem vacinar. E só não está a ser toda a gente vacinada porque se escolheu privilegiar o negócio de meia dúzia de multinacionais fortemente subsidiadas pelos Estados. Uma coisa é estar disponível para limitar liberdades em nome da saúde pública, outra é fazê-lo para proteger os lucros estratosféricos de acionistas a quem saiu, sem qualquer risco, a sorte grande.

Ouvi Marques Mendes defender um passaporte nacional, como existe em alguns países. Ele permitiria aos vacinados entrar em estabelecimentos (ou partes deles) vedados aos que não o estão. Apesar de não me agradar, poderia aceitar esta ideia quando a vacinação estiver terminada, se houver muitas pessoas a recusar a vacina, o que não é provável. Quem escolhe não participar no esforço coletivo porque quer entregar os riscos aos outros que lide com as suas escolhas. Mas, até a vacina ser um direito acessível a todos, isto é impensável. Para o que é relevante, que não pode ser tudo, há os testes.

É assustador percebermos até que ponto estamos disponíveis para viver em sociedades de castas sanitárias. As distopias estão, por estes tempos, mais perto do comentário político do que da ficção científica. Todos temos pressa de ver a economia a andar. Mas é bom ter cuidado e saber para onde nos levam os atalhos.»

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