«Se está a ler esta crónica através do seu smartphone, lamento informá-lo de que a probabilidade de ter o resultado da exploração de uma criança congolesa nas mãos é elevado. E sim, eu sei que o Dia Mundial contra o Trabalho Infantil já passou, mas só hoje consegui ler o artigo The dark side of Congo’s cobalt rush que guardei, também no meu smartphone, há cerca de duas semanas. E caramba se alguma vez, especialmente este ano, é tarde para escrever sobre trabalho infantil.
Gostava de começar por vos apresentar Ziki, menino congolês que “conheci” durante a leitura e que, depois de perder os pais num acidente, foi enviado por uma tia para trabalhar numa mina de cobalto quando tinha cerca de quatro anos. A mesma idade do meu filho, que ainda ontem fez uma festa porque se conseguiu calçar sozinho. E se para nós é estranho que uma criança desta idade trabalhe, no Congo, o trabalho infantil nestas minas é uma espécie de prato do dia, apesar da sua proibição legal.
Aliás, nem sei se devia chamar “trabalho” ao que estas crianças fazem, porque cada relato que leio é mais assustador do que o anterior. Crianças que trabalham 12 horas diárias em minas caseiras inseguras, sem qualquer material de protecção individual, muitas vezes drogadas para não sentirem fome e a receberem uma remuneração entre o nada e o miserável, consoante aquilo que consigam produzir. Crianças a quem não são sequer fornecidos alimentos se não fizerem dinheiro suficiente para o patrão que as explora.
Em 2014, segundo dados divulgados pela Unicef, estimava-se que existissem mais de 40 mil jovens e crianças a trabalhar nestas minas, mas tudo parece indicar que o número real é ainda mais assustador. O problema? É que é das minas congolesas que saem anualmente cerca de dois terços do cobalto consumido no mundo. O cobalto que faz com que as baterias dos nossos telemóveis, computadores e carros eléctricos funcionem. O cobalto que, apesar da investigação nesse sentido, ainda é insubstituível nas baterias de ião-lítio.
E não, não podemos usar outras. Porque as baterias de ião-lítio, que usam o cobalto como material catódico, são mais leves e têm relativamente às concorrentes a vantagem de não “viciar”. E num mercado de concorrência feroz nenhuma empresa vai querer voltar a apresentar produtos com baterias com mais ferro ou o níquel que tornariam o produto final mais pesado ou ligeiramente menos seguro.
Mas voltando a Ziki que, com 15 anos, parece bem mais novo pela fraca estatura de quem viveu uma década subnutrido, é impossível não nos chocarmos com tudo o que conta. O trabalho das crianças que na idade mais tenra lavam os minérios e seleccionam os melhores, que mais velhinhas carregam sacos e que depois, quando quem manda as acredita capazes, são enfiadas apenas com uma corda à cintura dentro de buracos com centenas de metros de profundidade. As crianças que mais tarde desenvolvem doenças respiratórias graves e que trabalham muitas vezes ao lado de grávidas que, graças à exposição aos metais pesados, acabam por dar à luz bebés com malformações e anomalias importantes. As crianças que todos os dias em que ganham dinheiro têm de pagar uma quantia a uma espécie de máfia que garante que, assim, não sejam roubadas. As crianças que o mundo devia proteger e a quem continua a falhar.
A Declaração Universal dos Direitos das Crianças foi proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 1959. Mas hoje, 62 depois, continuamos com um valor astronómico de 160 milhões de crianças em trabalho infantil no mundo. E este número adoece-nos, não adoece? Pensamos nos nossos filhos, no soninho descansado que têm, nos sorrisos felizes… E só de os imaginarmos num destes contextos ficamos nauseados.
Reparem, estou sentada no chão da sala, com o computador portátil no colo, e tenho vestido um pijama que comprei numa dessas lojas baratas de roupa e que diz na etiqueta ser proveniente de um país onde a percentagem de trabalho infantil é esmagadora. E nem sei bem no que isto me torna. Mas sei que estas duas coisas são a prova de que o trabalho infantil não é uma realidade assim tão distante. Porque nós, europeus que do alto do privilégio alertamos para o trabalho infantil, não deixamos de usar o produto desse trabalho e contribuir para que o ciclo não quebre.
O meu tio mais velho conta que o meu avô o tirou da escola mal o viu capaz de escrever meia dúzia de palavras e de fazer as contas mais básicas. E nem o ar franzino e sempre adoentado o safou. Tinha de ajudar a trazer dinheiro para casa porque era isso que se esperava do irmão mais velho. Mesmo que esse mais velho fosse sinónimo de oito anos acabados de fazer.
Sabem, eu queria olhar à volta e não ver trabalho infantil no meu pijama que nem é bonito, queria que este computador não precisasse do cobalto para estar ligado e queria que o trabalho duro tão precoce não tivesse roubado um pulmão ao meu tio. Queria estar em 2021 e não me sentir rodeada e conivente com o trabalho infantil.
Há um meme famoso na Internet que mostra na parte superior a Greta Thunberg num discurso inflamado sobre a importância dos carros eléctricos, enquanto, na parte inferior, uma criança congolesa diz qualquer coisa como “calma Greta, estamos a extrair o cobalto o mais rapidamente que conseguimos para as vossas baterias”. E se o meme é demagógico e uma forma sem sentido de ataque a Greta, também é verdade que a dicotomia ali presente nos devia fazer pensar.
Somos uns privilegiados, é o que somos. Os nossos filhos andam cuidados, de barriguinha cheia, vão à escola, têm mais brinquedos do que aqueles que necessitam e adormecem todas as noites numa cama confortável. E depois o tablet onde eles viram o Panda e os Caricas ao final da tarde tem uma bateria que funciona porque um menino de rua com fome, sem escolaridade e que nunca viu um brinquedo arriscou a sua vida para tal. Fica duro quando metemos as coisas nestes termos, não fica?
O Ziki do artigo que li foi resgatado das minas aos 15 anos e entregue a uma instituição gerida por missionários. Mas nunca se livrará das marcas físicas e mentais que as minas deixam. Minas legais e ilegais que continuam a crescer, mesmo contra a lei, e que colocam inclusivamente em risco as habitações de uma parte da população.
O ano de 2021 é o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil. O grande objectivo é o de promover acções legislativas e práticas que permitam que, em 2025, o trabalho infantil tenha acabado em todas as suas formas. O objectivo é terminar com esta forma de escravidão que a pandemia veio agravar. E será seguramente mais fácil estarmos sintonizados com este mote se nos lembrarmos todos os dias de que, apesar de não parecer, cada um de nós usufrui diariamente do trabalho de uma criança, seja no smartphone, no carro eléctrico ou numa peça de roupa. Todos temos, literalmente, o trabalho destas crianças nas mãos.»
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1 comments:
Fui trabalhar, aprender um ofício, com 13 anos de idade. Naquele tempo não se falava em trabalho infantil. Hoje, felizmente, que se FALA E BEM desse problema
Nesses Países mais pobres o trabalho infantil, por um pouco de pão duro, um pouco de farinha ou um pouco de arroz, faz parte de uma exploração miserável e execrável feita pelos Senhores feudais que exploram minhas, trabalho em obras, agricultura, estradas.
Solução? Sinceramente vou morrer, morrerão de velhinhos os meus descendentes e TUDO continuará na mesma.
Posso? Um beijinho para o seu menino, campeão de 4 aninhos. Que Deus o proteja SEMPRE.
Bom domingo
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