20.6.21

Carta para Noah

 


«Escrevo-te esta carta para quando souberes ler. Não é provável que a venhas a encontrar. Mas imagina que um dia resolves pesquisar o ano de 2021, este mês de junho, e deparas com um episódio da tua vida. E opiniões, muitas opiniões. Entre elas estará a minha.

A minha profissão é ver crescer crianças como tu. E responder a perguntas. Está bem ou mal? Magro ou gordo? Alto ou baixo? Devia falar mais? Que lhe dou para comer? Dorme suficientemente? Porque se porta assim? Pode fazer isto? E aquilo?

Pois tu, caso não te lembres já, ou não te tenham voltado a falar disso, esta semana acordaste muito cedo, levantaste-te, e saíste pela porta da rua entreaberta. Dizem que foste atrás do teu pai. E desapareceste. Estiveste desaparecido um dia e meio.

A GNR montou um quartel general na praça da aldeia onde vives. Vieram pessoas participar nas buscas. Não se cansaram. Fizeram-no sob a coordenação de uma equipa profissional. Milhares de pessoas pensaram em ti com afeto, preocupação e esperança. Até que um casal te encontrou. E voltaste à tua família e ao teu cão.

Tenho duas fotografias tuas. Uma foi a que os teus pais publicaram para que te procurássemos. A outra é a que mostra um momento pouco após o teu achamento. Tu és um menino esperto e aventureiro. Vê-se bem. Também se vê que o teu pai gosta de ti e que os soldados da GNR desta vez estão satisfeitos, porque fizeram o seu trabalho.

Não sei mais nada da tua família. Nem tenho de saber. Basta-me que se tenham reunido. Mas quero que saibas que os teus pais são gente boa. Tu soubeste caminhar pelos baldios de Proença, pela lama e pelos trilhos, atravessaste a vau uma ribeira, talvez te tenhas alimentado e bebido água. Não te magoaste. Não foste atacado. Talvez não tenhas encontrado nenhum animal maior do que tu. Se sobreviveste foi porque os teus pais estiveram contigo, estes anos. E te viram crescer. E te ajudaram, quando precisaste. E agora, que te perdeste, eles estiveram à frente dos que te procuraram.

Tens de ter algum cuidado. Aprender melhor os caminhos de volta. Saber olhar para o sol. Marcar os trilhos. Levar mantimentos.

Mas podes contar connosco. Espero que nos encontres, muitas vezes. Porque nós precisamos das nossas crianças, todas. E precisamos tanto de alguns como tu, Noah.»

Luís Januário (pediatra) no Facebook
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2 comments:

Janita disse...

Esta carta dirigida ao pequeno Noah, emocionou-me bastante. Pelo seu conteúdo valioso e porque me lembro sempre que oiço ou leio o nome do menino, um outro menino com o mesmo nome. O meu neto mais pequenino de todos os três netos que tenho. Nasceu nos Países Baixos e completou, no dia 13 deste mês, vinte meses.
Sei que nos pequenos meios rurais todos se conhecem e são solidários nos momentos de aflição.
Será que por lá as coisas seriam iguais caso o meu Noah saísse porta fora e se perdesse a meio da noite? Segundo li, o Noah saíu enquanto a mãe dormia e o pai tinha ido de madrugada trabalhar no campo.
Tudo está bem quando acaba bem.
Obrigada.

" R y k @ r d o " disse...

Li em silêncio. Emocionado por fascinado com o teor desta carta tão bem escrita, em silêncio me deixei ficar.
No entanto. Penso que um dia, um dia qualquer, se contará uma outra estória sobre este desaparecimento do Noah. É o que penso. Admito estar errado... mas ...

Cumprimentos.