«Roberta, Celestine, Pearl, Heyward, Katherine, Geraldine, Ruth, Aaron, Andre, Margus tinham entre 32 e 86 anos. Eram avós, tias, mães, pais, filhas, ativistas, professoras, cuidadoras, taxistas, seguranças. Pessoas amadas. Pessoas negras. Assassinadas há poucos dias por um terrorista supremacista branco em Buffalo, nos Estados Unidos. Vítimas do ódio racial. Vítimas de uma grande mentira: a supremacia branca. E de várias outras grandes mentiras que a sustentam.
O terrorista assassino escreveu um manifesto de 180 páginas no qual afirma ser racista porque acredita na diferença de capacidades entre raças. Partilha vários memes racistas que animalizam as pessoas negras e vários pseudo-estudos que demonstram a sua inferioridade. O terrorista acredita na teoria conspirativa da “Grande Substituição”, outra grande mentira. Teme que a sua “raça branca” seja substituída e diz ter até equacionado matar-se tal era o desespero. Em vez disso, preferiu matar outros. Matar o máximo de negros possível. Para isso preparou a sua performance macabra difundida em direto na Internet, e escreveu no manifesto um modus operandi para influenciar outros, tal como ele próprio foi influenciado.
É um lobo solitário. Outra mentira. Este assassino assumidamente racista, mas também antissemita e transfóbico, reivindica a pertença a uma comunidade. Uma comunidade internacional de supremacistas brancos. Ele não quer só salvar os americanos brancos, quer salvar a raça branca no mundo. E para isso incita outros à ação. “O lobo solitário não existe”, afirma a investigadora da evolução dos movimentos nacionalistas brancos, Seyward Darby, num artigo da Time, pondo também em causa a explicação da doença mental: “Racismo e supremacia branca não são doenças mentais, são comportamentos que se aprendem. Dizer isto é uma forma de as pessoas em posições de privilégio e poder se consolarem, pensando não ter aqui qualquer responsabilidade”.
A responsabilidade. De quem é a responsabilidade? Primeiro do autor, claro está. Foi capturado ileso apesar de estar fortemente armado graças a “técnicas de desescalada” utilizadas pelos agentes, segundo as declarações do comissário de polícia de Buffalo, Joseph Gramaglia. Técnicas estas que parecem inexistentes na detenção de pessoas negras desarmadas mortas pela polícia, como George Floyd ou Michael Brown.
O terrorista vai ser julgado, mas a responsabilidade não é só dele. A teoria da “Grande Substituição” tem os seus embaixadores. Nos EUA, um dos maiores porta-vozes desta teoria é Tucker Carlson, animador vedeta ultraconservador da Fox News. O Tucker Carlson Tonight, emitido cinco vezes por semana, é um megafone para todo o tipo de teorias conspirativas, de combate à “teoria crítica da raça” ou à inventada “teoria do género” e também de propaganda pro-Kremlin, sendo difundido e aplaudido na televisão estatal russa - “Cada vez mais os seus interesses correspondem aos nossos”, afirma a apresentadora Olga Skabeeva. O The New York Times analisou mais de mil episódios do Tucker Carlson Tonight dos últimos cinco anos e concluiu que existe uma omnipresença da teoria da “Grande Substituição” e do “racismo antibranco”. No seguimento desta investigação, um artigo do Le Monde refere que Tucker Clarson chegou a ser enaltecido por David Duke, cabeça dirigente do Ku Klux Kan, sugerindo num tweet que Trump o escolhesse como vice-presidente, e ainda que Andrew Anglin, neonazi, supremacista branco, editor do The Daily Stormer, afirmou sobre Clarson: “Literalmente o nosso melhor aliado”.
Os holofotes estão neste momento direcionados para os EUA e o caso está a ser tratado por muitos como “terrorismo doméstico”, esquecendo a sua dimensão internacional, esquecendo que o terror pretendido não é só direcionado para os negros do país. Esquecendo ainda que o termo “Grand Remplacement” foi criado e promovido por um ideólogo francês Renaud Camus, apesar de se ter inspirado de outras fontes, e foi, tal como no caso de Carlson, amplamente difundido por Éric Zemmour, também ele com direito a voz num programa sem real contraditório, durante anos, quatro vezes por semana, no canal de extrema-direita CNews. Zemmour, outro admirador de Putin, é o maior porta-voz da grande mentira do “Grand Remplacement” em França e foi ainda mais longe porque criou o partido “Reconquista”, lançando-se na corrida à presidência da República.
Portugal, país de brandos costumes, do festivo encontro luso-tropical entre povos, com uma Constituição robusta antifascista apresenta-se como estando imune a estes movimentos internacionais supremacistas, a estas grandes mentiras. Há por aqui um ou outro criminoso neonazi, é verdade, mas até têm bom fundo e merecem ser acompanhadas pelo Ministério Público na luta contra terríveis antirracistas. Mas a verdade é que Portugal não está imune.
André Ventura, a 14 de outubro de 2021, levou para dentro da Assembleia da República a grande mentira da substituição demográfica, a mesma que levou ao assassinato destas dez pessoas negras. Afirmou: “Há um problema estrutural, não só em Portugal como na União Europeia, que se chama substituição demográfica (…). A verdade é só uma, a UE no seu conjunto tem vindo a ser substituída demograficamente por filhos de imigrantes (…), é um problema que a Europa tem de enfrentar, porque ninguém quererá que daqui a vinte anos a Europa seja composta maioritariamente por indivíduos vindos de outros continentes”. No texto que acompanha a publicação Facebook do vídeo desta intervenção, André Ventura escreve “Substituição demográfica – Algum dia teria de se falar no Parlamento da perigosa substituição demográfica que está em curso em Portugal e na Europa. Ontem foi o dia!”.
Pedro dos Santos Frazão, deputado do Chega, partilha também o vídeo com um emoji de uma bomba e de uma explosão e escreve “Pela primeira vez no Parlamento Português ouve-se falar da grande substituição populacional que ocorre na Europa – este é O (a maiúscula está no texto) assunto político do século XXI que todos querem ignorar! E esta questão é totalmente de vida ou morte, literalmente!!”
Frazão, quando diz que é uma questão de vida ou morte, não está errado, mas quem morre, ou melhor, quem é morto são pessoas negras, latinas, muçulmanas, judias, brancas aliadas ou que estavam no lugar errado e no momento errado, por esse mundo fora, da Nova Zelândia aos EUA. O terrorista supremacista branco, por enquanto, está preso. Como se responsabilizam os instigadores? O medo é uma arma e as grandes mentiras também.»
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