21.5.22

20 de Maio: o simbolismo de uma data

 


«Nos anos 1980 a solidariedade portuguesa assinalou de várias formas, no mesmo dia, o direito à autodeterminação de Timor-Leste e do Sara Ocidental. Numa dessas iniciativas, que se tornou memorável, José Afonso juntou a sua voz à dos presentes na Voz do Operário, em Lisboa, ampliando a força das convicções na luta pela justiça a nível internacional.

O 20 de Maio celebrava a formação da ASDT (Associação Social-Democrata Timorense), em 1974, que meses mais tarde se transformaria na Fretilin (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente). Foi a data escolhida para o reconhecimento internacional da independência do país, em 2002, cujo 20.º aniversário festejamos esta semana. Mas recordava também a realização, em 1973, da primeira acção armada da Frente Polisário (Frente Popular para a Libertação de Saguia El Hamra e Rio de Oro) contra o colonialismo espanhol. Sendo os dois “territórios não-autónomos”, pendentes de descolonização, e constando da lista das Nações Unidas no âmbito da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais (1960), o paralelo era evidente.

Havia mais algumas coincidências. As ditaduras que governavam os dois países colonizadores entraram em colapso em meados da década de 1970, dando origem a processos de democratização: em Portugal, a 25 de Abril de 1974, através de um golpe militar que se transformou numa revolução; em Espanha, por vontade do ditador Franco, através da relegitimação da monarquia constitucional, em 1975. Os dois territórios foram invadidos por um poderoso vizinho, no último trimestre de 1975: o Sara Ocidental pelo Reino de Marrocos, em final de Outubro (a data convencional é 6 de Novembro); Timor-Leste pela República da Indonésia, também a partir de Outubro, com o assalto final a Díli no dia 7 de Dezembro. Ambas as acções foram fortemente condenadas pela ONU. Os respectivos movimentos independentistas, como forma de luta contra a ocupação ilegal dos seus países, proclamaram unilateralmente a independência: a República Democrática de Timor-Leste foi instituída dias antes da conquista pela força de Díli, a 28 de Novembro de 1975; a República Árabe Sarauí Democrática foi consagrada no dia seguinte à total retirada das tropas espanholas, a 27 de Fevereiro de 1976. Em 1984 foi aceite como membro de pleno direito da Organização de Unidade Africana (hoje União Africana).

Em 1991 surgiu um raio de esperança: a Frente Polisário e o Reino de Marrocos assinaram um acordo de cessar-fogo, sob os auspícios da ONU e da OUA, concordando em realizar um referendo de autodeterminação para decidir sobre o futuro do território. Nesse sentido, foi criada a Minurso (Missão de Paz das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental) e iniciou-se o processo de identificação do universo eleitoral sarauí. A Resistência timorense, os activistas em vários países que apoiavam a luta pelos direitos do povo de Timor-Leste, festejaram. Era um precedente importante, e poder-se-ia aprender muito.

No mesmo ano de 1991, enquanto o regime marroquino colocava todos os entraves possíveis à elaboração dos cadernos eleitorais, em Timor ocorria o massacre de Santa Cruz, que provocou indignação mundial e deitou por terra um plano negociado durante anos entre Portugal e a Indonésia no sentido da aceitação da soberania indonésia contra promessas, por parte de Jacarta, de respeito pela cultura portuguesa e pela religião católica na sua “27.ª província”. Seguiram-se a prisão de Xanana e o seu mediático julgamento, o reforço dos protestos da juventude timorense, a expansão da solidariedade internacional a todos os continentes e, em 1996, o Prémio Nobel da Paz atribuído a Mons. Ximenes Belo e a José Ramos-Horta. Foi nesse dia, no seu discurso de aceitação, que o bispo timorense afirmou: “Quando um povo escolhe a via não-violenta é frequente ninguém o ouvir”.

Fiel à palavra dada e à confiança na luta política por meios pacíficos, o povo do Sara Ocidental esperou até que a ONU, em 2000, desse por terminado o recenseamento eleitoral. Ao conhecer o resultado, prevendo uma derrota, Marrocos recusou-se a aceitar a realização do referendo. A lógica de Rabat foi então a mesma de Jacarta: em 2007 ofereceu aos sarauís a possibilidade de uma autonomia no quadro do Reino.

O povo timorense teve a oportunidade de escolher, a 30 de Agosto de 1999, entre aceitar ou rejeitar a “autonomia especial integrada na Indonésia”. Sabe-se como, apesar das ameaças, 95% dos eleitores inscritos foram votar, e 78,5% recusaram a autonomia, optando pela independência. Foi precisa clarividência e coragem política de todas as partes e apoio internacional a uma resolução pacífica de um conflito sem saída. As Nações Unidas ganharam credibilidade, Portugal, potência administrante, viveu um momento de unidade nacional lembrado com orgulho e saudade, a Indonésia libertou-se de uma guerra, e a região criou laços de cooperação entre os países que a compõem, a todos os níveis.

No caso do Sara Ocidental, as negociações conduzidas pela ONU não chegaram até hoje ao desfecho que, de acordo com o Direito Internacional, só pode ser um: dar a palavra ao povo sarauí para que ninguém escolha por ele o seu futuro. Consequência de 45 anos de impasse, a guerra entre a Frente Polisário e Marrocos recomeçou em Novembro de 2020, e continua. A procura de uma solução política também.

Ao mesmo tempo, a espiral de violação dos direitos humanos não cessa, porque uma ocupação pela força de um território é isso mesmo que provoca: humilhação e discriminação da população, reacção desta, repressão mais violenta, reforço das convicções e da luta. Um regime que oprime outros povos não aceita liberdades nem críticas em casa. Coerentemente, Marrocos é um regime autocrático, que castiga duramente todas as pessoas, incluindo intelectuais e jornalistas, que ousam pedir justiça.

A inaceitável invasão da Ucrânia levou à condenação generalizada, veemente, e com razão, da Rússia de Putin. O secretário-geral das Nações Unidas disse: “As fronteiras não devem ser redesenhadas a bel-prazer das grandes potências... A Carta das Nações Unidas baseia-se na igualdade soberana de todos os seus membros. Exige ‘o respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos’. Não podemos permitir que se minem estas normas” (13 de Março de 2022).

Estas e outras afirmações semelhantes, assim como o processo de autodeterminação de Timor-Leste, expõem um problema que se tenta muitas vezes esconder: a prática da política de “dois pesos e duas medidas”, de acordo com interesses circunstanciais.

Saibamos renunciar a ela, é o nosso futuro comum que está em jogo.»

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