28.6.21

O miserável

 


«A cabeça da maior parte das pessoas já está no Verão. Apesar dos avanços e recuos da pandemia, já só existem olhos para Sol, praia, vacinas, regresso à normalidade, europeu de futebol, bazuca financeira, defender uma ou outra causa consensual nas redes sociais, que fica sempre bem, e já está.

Fazer pela vidinha, que os tempos não estão fáceis. E depois, existem os outros. Os remediados, com ordenados miseráveis, endividados, mas que fingem para si próprios, ou para ou outros, que tudo se há-de compor, projectando um misto de esperança e de exasperação numa eventual redistribuição eficaz da riqueza. Mas há ainda um outro patamar. Lá no fundo. Muitos sem tecto para viverem, arrastando-se, sem horizonte, alguns assim antes da pandemia, mas muitos lançados para a rua nos últimos meses. Em Lisboa enchem as arcadas de prédios ou zonas abandonadas. De dia, vagueiam, solicitando ajuda.

“Oh! Miserável! Sai mas é daqui! Não podes estar aqui a incomodar!” A frase foi esta. Eu era um dos que, estando sentado numa esplanada no Largo da Graça, em Lisboa, a almoçar, estava a ser “incomodado” pelo “miserável”. Tinha acabado de ser vacinado e, como a maioria, partilhava nas redes sociais esse feito, pateticamente orgulhoso sabe-se lá do quê, mas aquele “miserável”, dito pelo empregado do restaurante, ficou-me.

Vivemos tempos em que existe uma parte da opinião pública que renega todas as conflitualidades que remetem para as palavras e o seu significado. “Isso é coisa de quem não tem mais nada para fazer”, argumentam. E ali fiquei eu a matutar naquilo, porque aquele “miserável”, dito daquela forma contundente, não era apenas uma referência de condição, era em simultâneo um julgamento e uma acusação.

Longe vão os tempos em que miserável era aquele que, por causa da sua situação de fragilidade, era digno de compaixão. Esse sentido seminal da palavra já lá vai. Agora miserável é aquele que age de forma indigna, avarenta, abjecta e desonesta e não há compreensão pela vulnerabilidade humanas ou pela pobreza extrema, apenas condenação ou punição. A genética linguística tanto nos transporta para o que se encontra numa situação lamentável, que não tem onde cair morto, como para aquele que não compreendemos muito bem, o que nos assusta.

Hibridizar pobreza e desprezo no mesmo enquadramento conceitual não é inocente. Por detrás dessa engenharia semântica esconde-se o receio, a criminalização e a conversão dos pobres em miseráveis, no sentido moral. Não é apenas a aversão ao pobre. É acusá-lo dessa condição. É declarar que é merecedor dessa circunstância, como se ser pobre fosse uma decisão, construindo-se a falácia de que é apenas a vontade que medeia os processos meritocráticos. Dessa forma transfere-se a questão para a esfera da ética individual, quando ela diz respeito a todos nós, sendo estruturalmente política. Omite-se intencionalmente a pobreza como questão colectiva, ou então abre-se espaço à caridade ou assistencialismo que serve para apaziguar consciências, mas que não resolve o problema, muitas vezes servindo até para o perpetuar.

Dessa forma cria-se a ideia de que os pobres o são, apenas porque não se esforçaram o suficiente. Vemo-los prostrados no chão, culpabilizamo-los por isso, ao mesmo tempo que nos fortalecemos narcisicamente por não estarmos numa situação semelhante. Mas nunca se sabe. A fronteira entre ser o empregado, ou os clientes da esplanada do restaurante, e os que caíram na rua e a quem apelidamos de forma estigmatizante de miseráveis, tem vindo a estreitar-se. Depois do Verão logo se pensa nisso.»

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1 comments:

" R y k @ r d o " disse...

Li e reli em silêncio e, olhando a imagem e lendo/relendo o texto, em silêncio, refletindo, me deixei ficar. Dá que pensar...

Cumprimentos