23.8.20

Lares: um inferno inevitável?



«O problema não é de agora, mas temos o hábito de fazer os debates à boleia de tragédias e do espaço de atenção que elas criam. Seremos capazes de, para lá das circunstâncias, olharmos para a raiz do problema e encontrarmos caminhos alternativos?

Em Portugal, temos muito poucos cuidados formais para as pessoas mais velhas: só 12,8% das pessoas idosas beneficiam de uma resposta no âmbito da rede de equipamentos sociais (incluindo lares, apoio domiciliário e centros de dia). O Estado investe mais de 600 milhões de euros por ano em acordos de cooperação com IPSS para respostas sociais na área da velhice, mas elas funcionam num esquema de monopólio do setor social privado. Temos imensas carências e o Estado nunca assumiu a provisão direta das respostas. É um “Estado financiador”, com competências de fiscalização cuja concretização fica muito aquém do necessário. Além disso, a escassez da oferta faz com que haja um volume preocupante de respostas clandestinas: cerca de 35 mil pessoas residem em 3.500 lares clandestinos. Ou seja, quase 30% dos cerca de 125 mil residentes em lares no nosso país vivem em instituições que funcionam sem enquadramento legal.

Quem trabalha nos lares dedica-se aos outros num contexto difícil, em que ao esforço e entrega profissionais correspondem salários colados ao salário mínimo, a ausência de carreiras e de valorização profissional, turnos pesados e uma sobrecarga laboral sem compensações. Precariedade, baixos salários e excessiva rotatividade são a regra num setor em que as mulheres são a larga maioria e onde a formação em contexto de trabalho praticamente não existe. No paradigma que temos, prevalece um modelo biomédico, com atividades limitadas, infantilização dos utentes, pouco investimento na qualificação dos profissionais, acompanhamento pouco individualizado e reduzido, com frequência, à higiene pessoal, às refeições e à medicação.

Não vale a pena olhar para o lado. Estamos a assistir a uma tragédia nos lares: na Europa, cerca de metade dos mortos por COVID são residentes em estruturas residenciais para pessoas idosas. A falta de profissionais, a falta de condições, a ausência de testes atempados garantidos pelos poderes públicos, a não aplicação plena das medidas de contingência, a própria arquitetura que dificulta o isolamento (quartos partilhados, equipamentos partilhados, etc.), a ausência de uma intervenção consistente no campo da saúde, o fechamento defensivo das instituições, ajudam a explicar o que se passa.

É preciso repensar todo o modelo que temos de cuidados para os idosos. Privilegia-se a institucionalização, que é inevitavelmente uma rutura com o quotidiano e uma limitação da autonomia das pessoas. Privilegia-se a externalização para instituições privadas impulsionadas pelo Estado, que as financia por via dos acordos de cooperação, havendo em consequência uma demissão da provisão pública, que alimenta uma rede de intermediários e de promiscuidade de interesses que dificulta o controlo e a intervenção direta em momentos de crise. Muitos lares não respeitam os rácios de trabalhadores definidos pela lei, o que é mais flagrante no período noturno e na área da saúde. Há uma separação artificial entre cuidados sociais e cuidados de saúde, que leva a que cada tutela e cada Ministério empurre as responsabilidades para o outro. No debate público dos últimos dias, a Ministra do Trabalho desvalorizou as suas responsabilidades de fiscalização e, no campo político, poucas têm sido as vozes que vieram responsabilizar os dirigentes das IPSS. Nestas, a solidariedade e a abnegação de muitos convivem com o favor político, com esquemas de gestão questionáveis, com a ausência de transparência, o enriquecimento ilícito à custa dos utentes e uma qualidade de serviços muito pouco escrutinada.

São necessárias medidas imediatas para mitigar e conter a pandemia nos lares: equipas multidisciplinares (com as autoridades de saúde, a segurança social e a proteção civil) que visitem todos os lares, incluindo os que não estão licenciados); envolvimento dos profissionais e dos utentes nestes processos; testes à Covid, nomeadamente na reabertura dos centros de dia e no regresso aos lares dos profissionais que estiveram de férias; espaços alternativos para acolher pessoas que estejam em lares sem condições, equipas em espelho e circuitos separados para positivos e negativos; um plano de contratação de equipas de apoio domiciliário (podíamos começar com um número idêntico ao programa lançado para os lares: 15 mil profissionais), para que seja possível evitar a institucionalização e domiciliar alguns dos utentes; reforço imediato das equipas de fiscalização e inspeção da Segurança Social.

Mas este é o momento de um debate que vá além do imediato. É preciso repensar profundamente o modelo de cuidados que temos. Precisamos de equipas locais de intervenção nas casas das pessoas mais velhas, de modo a garantir as adaptações infraestruturais nas habitações que permitam às pessoas permanecer o máximo de tempo em casa (exemplos: isolamento térmico, banheiras rebaixadas, escadas acessíveis…). Precisamos de reformular o conceito Centro de Dia e de muito mais apoio domiciliário, alargado em número de trabalhadores envolvidos, no tipo de apoio prestado, nos horários e nos dias em que funciona. Precisamos de apoio aos cuidadores informais para além dos 30 concelhos em que funcionam atualmente os projetos-piloto. Precisamos de apostar noutros modelos institucionais (mais humanos, mais pequenos, mais respeitadores da biografia e da individualidade das pessoas) e sobretudo num plano de desinstitucionalização, que oriente o dinheiro que existe para respostas de autonomia, com um programa para a criação de projetos de co-housing (formato já previsto na lei de bases da habitação e que há anos é aplicado nos países nórdicos), respostas comunitárias nas aldeias (por que razão não se tornam as próprias aldeias infraestruturas de cuidados alternativas aos lares?) e em todo o território, com habitação autónoma e centros comunitários que sejam espaços de convívio. Precisamos de garantir a participação das próprias pessoas idosas em todo este debate.

Se não formos capazes de o fazer agora, quando o faremos?»

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