23.4.25

Não calar o Papa do fim do mundo

 


«Vós sabeis que o dever do Conclave era dar um Bispo a Roma. Parece que os meus irmãos Cardeais o foram buscar quase ao fim do mundo. Eis-me aqui!”

Foi assim que, chegado à varanda da Basílica de São Pedro, Jorge Bergoglio, agora Francisco, se apresentou. Deixo para o texto do semanário o balanço mais profundo sobre o pontificado de um Papa que considero, apesar de não crente, exemplo político e moral. Aqui, quero falar do fim do mundo. Não do lugar de onde veio o primeiro Papa nascido fora da Europa nos últimos mil anos, mas dos lugares onde foi e quase ninguém vai. Talvez as duas coisas estejam ligadas.

Logo dois anos depois de iniciar o seu pontificado, em fevereiro de 2015, Francisco visitou, de surpresa, um bairro nos subúrbios de Roma. Estava a caminho de uma visita a uma paróquia na área operária de Tiburtina quando mudou a rota para conhecer um bairro de lata de que tinha ouvido falar. E assim, livre e próximo, foi rodeado por 150 trabalhadores do Peru e do Equador, os mais precários dos imigrantes.

Ao longo destes 12 anos de pontificado, não se limitou a defender os imigrantes. Foi severo com quem escolhe o ataque aos mais frágeis para subir na política. Criticou, sem meias palavras, a criminalização da imigração e as políticas de deportação. Disse que “quem trabalhar de forma sistemática e com todos os meios para repelir os migrantes”, se o fizer “com consciência e responsabilidade”, cometerá “um pecado grave”. E concluiu: “o Senhor está com os migrantes, não com quem os rejeita”.

Há dois meses, escreveu aos bispos norte-americanos: “o Filho de Deus, ao fazer-se homem, escolheu viver também o drama da imigração”. E, como nunca deixava os valores a pairar no vazio, acrescentou que “o ato de deportar pessoas que, em muitos casos, abandonaram as suas terras por motivos de extrema pobreza, insegurança, exploração, perseguição ou grave deterioração do ambiente fere a dignidade de muitos homens e mulheres e de famílias inteiras, e coloca-os num estado de particular vulnerabilidade”. E recordou uma ideia cada vez mais ignorada pelo seu rebanho: “o amor cristão não é uma expansão concêntrica de interesses que pouco a pouco se estendem a outras pessoas e grupos”, exortando os fiéis e todos os homens e mulheres a “não cederem a narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados”.

Na Eslováquia, foi ao bairro miserável de Luník IX, em Košice, para se encontrar com ciganos e dizer-lhes que "colocar as pessoas num gueto não resolve nada". No seu pontificado, pediu perdão por séculos de discriminação e maus tratos e lamentou a “incompreensão, rejeição e marginalização” de que aquele povo ainda é alvo, comparando-o a Jesus. Disse que eram “filhos e filhas amados de Deus”. Disse ainda que “muitos dos valores que os identificam como povo não são somente evangélicos, mas também proféticos e contraculturais neste momento”.

Há um ano, muitíssimo debilitado, Francisco já não se conseguiu ajoelhar. Mas, sentado na sua cadeira de rodas, não faltou ao dever: lavar, enxugar e beijar os pés de presidiárias, repetindo o momento em que, em 2013, o fez com doze reclusos, incluindo mulheres e muçulmanos. Se alguém era alvo dos cultores do ódio para daí tirar vantagens políticas, ele lá esteve para o defender.

Este Papa não foi uma exceção na Igreja. Foi, aliás, mais uma tentativa de a Igreja se reencontrar com Cristo. Disse-o, numa conversa que tive com José Tolentino de Mendonça para o programa católico 70x7, em 2015, que quando chegamos ao fim do mundo, aos bairros de lata de ciganos, às prisões, aos lugares onde os imigrantes se escondem, podemos encontrar alguns ativistas ou voluntários de ONGs, mas está lá sempre alguém da Igreja. Porque a Igreja é muita coisa. É o salão do poder, o canto onde acontece o abuso, o púlpito onde se julga a diferença e o fim do mundo, onde só a Igreja e Bergoglio vão.

Estes são dias para chorar a memória de um cristão extraordinário. Mas se o exemplo serve para alguma coisa, se não nos limitamos a mais um momento mediático vazio de vida, serve para respeitar a mensagem de quem parte. Este foi o Papa dos ciganos, dos imigrantes, dos presidiários, dos humilhados, dos perseguidos e dos ofendidos. Este foi o Papa que defendeu as vítimas do ódio. E foi nesse fim do mundo, onde elas vivem, que encontrou Cristo. Até eu, que não sou cristão, o vi nos seus atos.

É natural que, por estes dias, se guardem palavras de respeito e admiração. É normal que um católico se junte a este momento, mesmo que discordasse do Papa. Mas há limites para o cinismo. Por estes dias, são demasiados os que fazem um minuto de silêncio na diabolização dos imigrantes ou na cedência cobarde aos que os diabolizam para repetirem, como se fosse um jingle publicitário, “todos, todos, todos”.

Recordar a mensagem do Papa Francisco, que é tão política como religiosa, não é usar a sua morte para constranger os que nunca lhe deram ouvidos. É não permitir que se use a morte do Papa para apagar a sua mensagem radicalmente corajosa e dolorosamente solitária.»


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