«E agora, algo completamente diferente. Trago-vos um tema particularmente enfadonho. Ou talvez não, já me dirão. A pergunta que me coloco é simples: o que podemos aprender, se é que alguma coisa, com os orçamentos que os partidos apresentaram para as próximas legislativas?
Podemos, é claro, pegar no tema pelos seus aspetos mais pitorescos. O Chega, por exemplo, é o campeão dos gastos em brindes (250.000 euros), logo seguido pelo PS (180.000 euros). Será que estes partidos acham mesmo que alguém no seu perfeito juízo muda o seu sentido de voto graças a um pin com a cara de André Ventura ou a uma caneta imaculadamente cor-de-rosa? Será que esta generosidade algo pueril é o reflexo da forma como encaram os eleitores? Tomar-nos-ão a todos por crianças? É para isto que servem as subvenções estatais?
Mas deixemos de lado estas considerações mais caricatas até porque, convenhamos, há aspetos mais sérios para analisar. E o mais interessante de todos eles é este: a AD tenciona gastar, nada mais, nada menos do que 1.000.0000 de euros na “conceção da campanha, agências de comunicação e estudos de mercado”. Para que se tenha uma ideia, este montante representa quase 40% de todo o orçamento da aliança para a campanha eleitoral. Na mesma rubrica, o PS inscreveu 600.000 euros que correspondem a quase 27% do total que o partido planeia gastar até ao dia 18 de maio. Com as notáveis exceções do Bloco de Esquerda e da CDU, na medida das suas respetivas possibilidades, todos os demais partidos com assento parlamentar reservam também verbas proporcionalmente significativas para este efeito.
Ora, porque é que é relevante refletir sobre esta centralidade que os partidos entendem dar às “agências de comunicação e estudos de mercado”? Por duas razões fundamentais. A primeira é, aliás, fácil de intuir. E nem se pode dizer que seja nova. Há muito tempo que os partidos, e em particular os grandes partidos do regime que disputam o poder ao centro, se tornaram caricaturas ideológicas. E não falo apenas da sua obsessão pela forma que tantas vezes remete para segundo plano a discussão substantiva das suas propostas. Nessa frente, todos teremos reparado, por exemplo, no “milagre” da transmutação do impulsivo Pedro Nuno Santos no simpático cordeiro com pose de Estado que se vem apresentando nos debates televisivos. Ou no sorriso de desdém que, pelos vistos, acompanha Luís Montenegro desde a mais tenra infância e que lhe serve para convenientemente desvalorizar ou chutar para canto qualquer pergunta mais incómoda. E só não sublinho o sorriso amarelo de Mariana Mortágua porque, pelas razões opostas, por ser tão evidentemente artificial, denota precisamente falta de algum investimento e treino mais profissionalizado.
Quando me refiro a caricaturas ideológicas, quero sobretudo fazer alusão à crescente facilidade com que, em particular, os grandes “catch all parties” moldam os seus programas eleitorais, não tanto aos ditames do seu património filosófico histórico ou ao vibrar das convicções profundas dos seus líderes, mas, ao invés, ao pulsar de uma opinião pública que, cada vez mais, medem com redobrada obsessão e sofisticação. Ou alguém verdadeiramente acredita que a perceção de insegurança que atormenta Montenegro ou a epifania que Pedro Nuno Santos teve com a imigração são mesmo instintos profundos que saíram dos mais insondáveis recantos das suas almas? Se é o caso, desenganem-se. Já faltou mais para que ouçamos algum dirigente citar Groucho Marx: “Estes são os meus princípios. Se não gosta deles, tenho outros...”
Escuso de dizer, é óbvio, que esta plastificação de programas e ideários não se faz sem custos muitíssimo relevantes. Ao transformarem-se em meros espelhos ou amplificadores dos humores volúveis do eleitorado, os partidos perdem respeitabilidade, enfraquecem os vínculos com as suas bases de apoio e fragilizam o seu papel de organizadores das lutas ideológicas pacíficas numa sociedade democrática. Ao transformarem-se em meros invólucros onde cabe tudo e o seu contrário, abrem caminho para a sua irrelevância e substituibilidade com todos os perigos que daí advêm.
Mas há mais nestes orçamentos de que vale a pena falar. É importante que se perceba também que os consultores de comunicação política e as sondagens não são apenas ferramentas de suporte dos grandes partidos. São também, em certo sentido, elementos condicionadores da opinião pública e, portanto, dos próprios processos democráticos. As sondagens, por exemplo, medem o pulsar da opinião pública, mas, num típico mecanismo circular, são também ferramentas eficazes para a influenciar. Criam expetativas e dinâmicas que estão longe de ser irrelevantes para a abstenção ou mesmo para os resultados eleitorais. Aliás, se assim não fosse, não haveria razão para proibir a sua divulgação em vésperas dos escrutínios.
De igual forma, os consultores de comunicação política não tratam apenas da cor das gravatas dos líderes partidários. Não raras vezes criam, moldam e distribuem informação e dados a jornalistas e a comentadores no espaço público. Nada disto é por natureza ilegítimo nem seria justo lançar uma suspeição generalizada sobre os profissionais destas áreas. Devo dizer, aliás, que no quadro das várias funções empresariais que fui desempenhando ao longo da vida, sempre fiz uso de estudos de opinião e de agências de comunicação. Mas é bom que se tenha consciência de que, num ambiente de enorme fragilidade do ecossistema mediático, com mecanismos de verificação de informações ou de validação de pressupostos técnicos de estudos de opinião mais rarefeitos, estes atores e ferramentas ganharam uma influência e uma preponderância acrescidas. É isso que explica, aliás, o esforço financeiro que os partidos dedicam a estes instrumentos e instituições.
Ora, se assim é, e se estamos a tratar do coração dos nossos sistemas democráticos que é, afinal, o ambiente em que acedemos a informação, formamos e consolidamos as nossas opiniões políticas, seria bom que, para garantir boas práticas e prevenir distorções, aos reguladores competentes não passassem desapercebidos este fenómeno e estes atores. Receio bem que possam estar parados no tempo e que o essencial lhes esteja a passar ao lado. Mas posso estar a ser injusto.
Regresso ao princípio. Se aguentou até aqui, é provável que concorde comigo. Tal como os nossos orçamentos domésticos dizem mais de nós próprios do que gostaríamos de supor, também os orçamentos de campanha podem ser um improvável, mas útil barómetro do estado da nossa democracia.»
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