15.3.20

O vírus da nossa humanidade



O egoísmo e o ódio têm uma só pátria; a fraternidade não a tem. Lamartine

«O coronavírus é um teste à nossa humanidade. Será que, no meio da angústia de podermos ser contaminados ou de vermos os mais queridos afetados, seremos capazes de olhar para os outros como parte da mesma humanidade? E será que além de pensarmos no nosso problema, teremos tempo para nos comover com a sorte dos refugiados que vão desaparecendo das páginas dos jornais?

Como não nos lembrarmos neste tempo de angústia do romance de Camus, A Peste, sobre uma epidemia mortífera que contamina uma cidade? A cidade é fechada e campos de quarentena são erigidos. O herói do livro, o médico Rieux, luta contra a epidemia ao mesmo tempo que afirma os valores da solidariedade e da humanidade comum, denunciando os que passaram a ver “o outro” como o mal, a ameaça, o “estrangeiro” a abater. Para Rieux, a resistência e a indignação são a forma de aproximar os seres humanos e de fazer emergir o “que têm em comum: o amor, o sofrimento e o exílio”.

Escrita em plena II Guerra Mundial, esta obra é também uma alegoria à resistência contra a peste do fascismo que tanta gente contaminou.

Trump, ao classificar o codiv-19 de “vírus estrangeiro”, quando anunciou o fecho das suas fronteiras aos Estados europeus de Schengen, assume a ideologia que sempre marcou a sua presidência: a xenofobia, o racismo e o nacionalismo. Racismo que, como o vírus, se tem espalhado um pouco por todo o mundo nos ataques contra os chineses e os asiáticos, vistos pelos defensores da supremacia branca como o novo perigo amarelo.

A Europa não está, infelizmente, imune ao vírus da desumanidade, ao medo do outro visto como portador do mal. Os refugiados tratados como inimigos na fronteira da Grécia com a Turquia, o apoio que o governo de Atenas recebeu das instituições da União, a criação pela Grécia de um Guantánamo para refugiados — um centro de detenção onde o direito não se aplica —, como denuncia uma reportagem do New York Times, são também sintomas da banalização do mal.

Na altura em que os cidadãos dos Estados da União e os seus governos tudo fazem para combater a pandemia, em que a nossa atenção se concentra nas medidas sanitárias, não seria mal pensarmos no que serão as democracias e a União Europeia para além da crise, por mais longa que ela seja.

Se a União Europeia se destruir não será porque o coronavírus provocou uma nova crise financeira, mas porque perdeu um dos valores fundamentais que a fundaram: o da fraternidade. Na fraternidade para com os que são infetados pelo vírus, nos cuidados que cada tem de ter a pensar no próximo, na consciência que os serviços nacionais de saúde são essenciais à nossa sobrevivência, vamos redescobrindo a nossa humanidade. Mas essa fraternidade tem de ser incondicional e dirigida a todos os seres humanos. É essa fraternidade que não pode ser negada aos que vivem no medo da doença ou aos que fogem da guerra, pois são todos vítimas de crises que os ultrapassam.

Seria bom que muitos dos europeus que se indignam (e com razão) por serem transformados num vírus estrangeiro por Trump encontrassem tempo para pensar nos que são reprimidos nas fronteiras da Europa, nos que veem os barcos das suas odisseias a serem destruídos nas águas que foram de Ulisses, o primeiro dos exilados.

O Mundo não tem fronteiras. Não as tem para os vírus, para as ideias, nem para os mercados. Alguns pensam ainda poder travar a viagem dos homens com arame farpado. Não será um absurdo? Não será a negação da solidariedade imprescindível para vencermos as crises?

Trump pode tentar ganhar as eleições com um discurso xenófobo, os europeus podem querer isolar-se dos males da guerra nas suas fronteiras, mas não conseguem, assim, prevenir o pior dos vírus, aquele que vai destruindo as nossas democracias.

A inquietação com um Mundo que pode num abrir e fechar de olhos ser hostil, incapaz de nos garantir os direitos fundamentais, incluindo a saúde, continuará a ser uma das grandes angústias do século XXI. No século XX, os grandes cenários apocalípticos eram os da guerra. Depois da II Guerra Mundial, o cinema enchia as salas com o terror da hecatombe do inverno nuclear, como em O Dia Depois de Nicholas Meyer.

Hoje os cenários apocalípticos já não são os da ficção científica, mas os que acompanhamos pelas televisões e pelas redes sociais em direto, com mais ou menos sensacionalismo: tragédias humanitárias, catástrofes naturais, tragédias ambientais e pandemias. O que será decisivo para o nosso futuro será a nossa capacidade para preservar a nossa humanidade comum.

Rieux, no final do livro, alerta, em plena festa de comemoração da vitória sobre a Peste, para outras epidemias que virão, e para a necessidade de se estar preparado para elas, e aponta ainda para a importância de redigir a crónica daquela epidemia porque dela se poderia concluir que “há nos homens mais coisas a admirar do que a desprezar”. Hoje, quando vemos a abnegação de tantos no combate à pandemia, e que no meio do medo se erguem vozes em defesa dos refugiados, podemos dizer que está aí o futuro da Europa.

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