«Eu não quero saber das evidentes ambições presidenciais do almirante Gouveia e Melo. É um cidadão português nos seus plenos direitos e, por isso, se o entender, pode concorrer. Mas já tenho muito contra um militar chefe do Estado Maior da Armada a conduzir uma campanha presidencial usando e abusando do seu cargo. Esta semana mostrou que a sua campanha está em curso e que não se coíbe de usar o cargo para obter notoriedade e vantagens.
Tudo isto se soma a uma semana muito má para as Forças Armadas Portuguesas. Dizendo isto, a reacção mais comum dos portugueses é achar irrelevante o que acontece nessa área, porque existe um sentimento de indiferença e de inutilidade sobre as Forças Armadas. Ano após ano, como efeito de várias medidas como o fim do serviço militar obrigatório, a farsa da sua substituição por um dia mais ou a menos de diversão chamado pomposamente Dia da Defesa Nacional, a profissionalização das Forças Armadas com orçamentos escassos, a que se soma o processo de deslegitimação dos militares um pouco por toda a Europa e que só a guerra da Ucrânia estava a reverter. Uma maioria dos portugueses acha que as nossas Forças Armadas não servem para nada e que o dinheiro que com elas se gasta é sempre desperdício. Quando se somam notícias sobre o estado operacional do material militar como aconteceu recentemente com os tanques Leopard, o acidente mortal com explosivos armazenados e agora com um navio defeituoso na Madeira, então a indiferença de fundo e a sensação de inutilidade é reforçada mais uma vez.
Mas não é o estado de degradação do equipamento e armamento, veículos e navios, quartéis e outras instalações militares que é o mais grave nesta história. É a indisciplina revelada pelos marinheiros que se recusaram a sair num navio que estava em más condições. A insubordinação é uma das violações mais graves do ethos militar e, como tal, deve ser punida, e por muito que os marinheiros possam ter razão sobre o estado do navio, deviam cumprir ordens mesmo com o risco inerente.
Mas, mais grave do que isto é ver o almirante Gouveia e Melo chamar as televisões para mostrar a sua reprimenda aos marinheiros insubordinados, algo que, que eu saiba, é inédito num comandante militar ainda por cima num caso grave de indisciplina. Uma matéria que exigia a maior das discrições e que é suposto os militares não tratarem em público. Logo de seguida, o almirante fez ainda mais estragos na sua reputação e na da arma que dirige: afirmou que o que acontecera tinha como objectivo prejudicar as suas expectativas presidenciais, traduzidas nas sondagens, e que tal tinha a ver com a organização do PCP nas Forças Armadas. Exactamente o que nunca deveria ter dito, porque se coloca no mesmo plano dos insubordinados, eles actuando às ordens de um partido político, ele às ordens da sua ambição pessoal.
Como estamos numa época de tudo à balda, a única coisa que interessou a quem pega neste assunto foi, na lógica situação-oposição, cair em cima do Governo e, para o fazer, acaba por desculpar a insubordinação – justificando-a com o mau estado do navio. Mas o almirante fez pior e, se vai continuar a usar o cargo para promover ou defender a sua candidatura presidencial, devia abandonar as funções ou ser demitido por alguém.
Para um militar, esta ambição sem princípios é inaceitável e perigosa para a democracia. A pergunta que, muito publicamente, com as câmaras à espreita, fez – “que interesses estão a defender?” – respondeu retoricamente: nem os “vossos”, nem os da Marinha. Mas esqueceu-se de acrescentar “nem os meus”.»
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