«A luta derrotada para a introdução no Censos de uma pergunta sobre as ‘origens étnico-raciais’ dos Portugueses veio trazer a lume uma confusão categorial com potencial racista, aproveitada por Fátima Bonifácio, no PÚBLICO, a 6 de Julho. O escândalo foi tal que, no dia seguinte, o diretor Manuel Carvalho vem explicar porque deixou publicar um texto que “está, no mínimo, nos limites do discurso de ódio, faz generalizações que põem em causa o combate à discriminação racial (…), usa uma linguagem insultuosa para diferentes minorias e coloca ênfase numa radical oposição civilizacional entre os ‘nós’ europeus e os ‘outros’, africanos ou ‘nómadas’. Algo que Rui Tavares analisa como produto de um “neo-reacionarismo que seduz desde criaturas que vicejam nas catacumbas dos comentários da Internet até colunistas de títulos sérios”.
Uma amálgama caótica de ideologias variadas que, todas elas, como é próprio das ideologias, prescindem do rigor científico, falham a realidade vivida no terreno e refugiam-se no discurso, inventando ‘categorias’ que vivem exatamente da falta de rigor e da propositura de níveis de análise que escamoteiam os graves dramas e danos exercidos historicamente na realidade social. O racismo é também isso, a omnipotência do discurso ideológico, que não é um exclusivo do ‘neo-reaccionarismo’ de direita.
Poderíamos supor que a Catedrática Bonifácio delira, mas esse é o discurso ideológico típico nacional, que incensa a ‘civilização ocidental’. Diz a ideóloga que existe uma “entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade”, uma ‘entidade’ que obviamente só existe no nível do discurso académico. E acrescenta: “isto não se aplica a africanos nem a ciganos”. A argumentação que aduz é larvar e não merece reprodução. Acontece que a frase tem um efeito performativo. Se ela, que é Professora catedrática de História e escreve regularmente nos jornais, assim o diz, é porque ‘tem autoridade’ para os excluir da ‘Cristandade’ e da Portugalidade.
Vamos então aos factos: a historiadora não fornece quaisquer dados da sua área de competência e envolve-se na área da antropologia cultural, onde chumbaria na respectiva licenciatura, por incompetência movida pela paixão xenófoba. Eu diria que chumbaria também em História, como colegas seus farão o favor de evidenciar.
Em Portugal, não há qualquer relação entre a história dos ‘africanos’ (entenda-se, negros e não africanos brancos, indianos ou chineses), trazidos pelas caravelas e pela descolonização, e a história dos Ciganos, raptados da Índia por um sheik muçulmano no ano de 1018, escravizados no Médio Oriente e no leste europeu ortodoxo e fugidos para o Ocidente católico no século XIV.
Nessa época, D. Manuel tratava o Rei do Congo por “caro primo”, convidava os filhos daquele a virem para a sua Corte e transformava-os nos primeiros Bispos negros da Cristandade. Entenda-se que esta ‘Cristandade’ é polissémica e nada tem a ver com a ‘cristandade’ de Bonifácio que, em vez de produzir familialismo cristão, produz Suprematismo infernal, Orgulho Branco e exclusão social e mediática dos ‘outros’. A Direita de Bonifácio, desorientada e em pânico, dá a si mesma e dela própria este estrondoso espectáculo ‘civilizacional’ e ‘cristão’.
No século XVI, os Ciganos vindos de Espanha eram alvo de éditos de expulsão (1526), “degredados para sempre para as galés” (1579), com pena de morte, “sem apelação nem agravo” (1592), proibidos de falar ‘geringonça’, usar trajes ciganos e ler a sina (1647), dando início a um projecto de genocídio cultural (galés para os homens; degredo em Angola para as mulheres, sem os filhos; retirada dos filhos antes dos 9 anos para serem postos a servir como órfãos (1647). Esse projecto político assume o discurso manifesto poucos anos depois, propondo-se “extinguir este nome e modo de gente vadia de ciganos, (…) com pena de morte (…) se não tomarem géneros de vida de que possam sustentar-se” (1694), um genocídio cultural retomado em 1800 com a instrução de que se “prendam os que andam vagos pelo reino (…) e os filhos de um e de outro sexo sejam transportados para a Casa Pia e instruídos.”
Já neste século, encontrei em Bragança uma Fundação Oliveira Salazar com o mesmo objectivo: tirar filhos de ambos os sexos a famílias ciganas e reeducá-los num internato ‘cristão’ para que, chegados a adultos, reeducassem os outros ciganos. Para espanto do director, a ‘experiência’ falhou: tinham deixado de ser ciganos e, desenraizados culturalmente, nada queriam com eles.
O projecto racista é paradoxal: os ciganos, escravizados e forçados ao nomadismo, da Índia à Ibéria, são condenados por terem fugido à escravatura que os sedentarizava no leste europeu e agora ’serem nómadas’, dado que são impedidos de se sedentarizarem na malha urbana (ninguém lhes aluga casas ou vende terrenos, ou lhes dá trabalho, de acordo com a Audição feita na Assembleia da República), sendo de novo forçados ao nomadismo em Portugal pela GNR e pelas autoridades, de Viana do Castelo (1993) a Faro (2003). O édito da CM de Ponte de Lima é claro quando pretendeu impor “aos indivíduos de etnia cigana (…) que abandonassem o Concelho no prazo de oito dias e que de futuro apenas permanecessem 48 horas”. Poderiam, como é óbvio, ser retirados dos inúmeros acampamentos dispersos do Minho ao Algarve e realojados em habitação social mas é exatamente contra isso que a populaça se levanta, ameaçando desertar autarcas na eleição seguinte. “Eles não são portugueses”, diz o povo e a catedrática, “eles são ciganos, tribais e inassimiláveis”.
Não há como negar o racismo contra os ‘negros’ mas tal como escrevi em 1997 num Relatório solicitado pelo Governo de então, com base em dados estatísticos comparativos de uma dezena de minorias, os ciganos são, a muito grande distância, “a mais grave e escandalosa de todas as situações de racismo e xenofobia registadas em Portugal”. Leia-se, mais de vinte anos depois: de continuado e escamoteado racismo institucional, popular e, com Fátima Bonifácio, académico, produzindo ao longo das gerações condições habitacionais profundamente negativas para muitos e de exclusão do mercado de trabalho para quase todos; e de fechamento e atraso educacional, uma vez que o nomadismo forçado e a vida em acampamentos nunca foi compatível com a frequência escolar.
Na sua ignorância, a historiadora confunde assimilação cultural com integração culturalmente diferenciada e recusa a realidade do Multiculturalismo, o respeito pela diversidade de um mundo com mais de cinco mil línguas e culturas. A natureza histórica é multicultural, e acentua a diversificação através das migrações voluntárias e forçadas para contextos múltiplos; o Despotismo Imperial é assassino, física, económica e culturalmente – seja ele nazi, soviético ou americano (como os japoneses de Hiroxima e Nagasaki recordarão, para não falar em vietnamitas e, mais recentemente, iraquianos, líbios ou sírios invadidos no seu território, em nome do ‘Século Americano’, da ‘democracia’ e do petróleo).
Não podemos integrar por decreto, como é óbvio, mas podemos integrar por boa governação pós-racista, que promova a discriminação positiva e o combate à ciganofobia institucional com resultados palpáveis no terreno e na vida das famílias - e não apenas no discurso, na ‘educação’ ou na “apresentação pública”. Dados sobre os efeitos da discriminação negativa secular sobre as comunidades ciganas em Portugal, até à actualidade, não faltam. O que falta é decisão e acção política coerentes.»
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