«No lançamento do livro "Professor Mário Pinto", na Universidade Católica, perante Passos Coelho e Cavaco Silva, Marcelo Rebelo de Sousa atribui a aprovação da lei da eutanásia à “menor presença ou relevância de católicos nas decisões coletivas”. E responsabilizou a "indiferença de bastantes” por “recusa a abordar a substância, preferindo a forma, ou por resignação cívica ou por afastamento antissistémico". Lamentou que as exceções estivessem “cada vez mais circunscritas a clássicas áreas do posicionamento católico, não necessariamente às mais representativas nas decisões coletivas ou comunitárias".
Como é seu hábito, tentou dar contexto à análise: "O primeiro referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez mostrara como se avizinhava uma viragem cultural numa sociedade na qual a Igreja Católica diminuíra a sua influência, sobretudo em sectores de expressão cultural, na comunicação social, na juventude e nas decisões políticas nacionais, regionais e locais. E o segundo referendo sobre a IVG confirmou o processo vivido". Tudo não passaria de uma análise legitima, não fosse o Presidente da República dizer que estas realidades "tornam mais espinhosas magistraturas chamadas a arbitrar". Porque raio a perda de poder político de uma Igreja, que informa a posição oficial dos católicos, em matéria penal tornam o papel do Presidente mais “espinhoso” e não mais fácil?
A igreja e as associações de católicos, de juristas a médicos, não podiam ter sido mais ativas neste processo, organizando protestos e participando no debate. E bem. Não sou dos que acham que a religião tem de ficar na sacristia. Mas pode dar-se o caso, confirmado no último referendo do aborto e que não escapou ao Presidente, destes setores não representarem a maioria dos católicos. Pode não haver “indiferença” ou “resignação” dos católicos, apenas uma divergência de muitos deles com as “cada vez mais circunscritas a clássicas áreas do posicionamento católico”, onde Marcelo se inclui. Talvez uma boa parte dos católicos não se tenha conformado, mas abraçado a natureza laica do Estado, assumindo que as suas escolhas morais não têm de ser vertidas para as leis que se aplicam a todos.
Ao fazer este discurso, como Presidente da República, Marcelo não só se esqueceu da laicização do Estado como um dos fatores para esta mudança cultural, como se esqueceu de a ter em conta na sua postura pública. Ser católico pode influenciar as convicções do Presidente. Ser um católico conservador, coisa que o distingue de milhões de outros católicos, também. E as suas convicções terão seguramente influência nas suas decisões. O que me parece discutível é o Presidente de um Estado laico lamentar junto de outros católicos o facto de o deixarem demasiado sozinho na “espinhosa” tarefa de resistir à mudança cultural do país.
O Estado laico tem sabido respeitar as várias convicções morais e religiosas dos cidadãos, permitindo que, dentro das balizas que temos como consensuais, a lei inclua as opções individuais de cada um. As convicções dos católicos (ou dos católicos mais conservadores) manifestam-se quando decidem não interromper a gravidez ou não recorrer ou ajudar num processo de eutanásia. Não se devem refletir na lei, usando os poderes coercivos do Estado para impor as convicções religiosas de um grupo.
Ao recordar o referendo à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, Marcelo reconheceu uma de duas coisas: ou que os católicos, como corrente de pensamento, já não são maioritários; ou que grande parte deles não o acompanha na vontade de usar a lei para o impor as suas convicções religiosas. Decidiu atribuir a isso a uma qualquer passividade, como se um católico que não acompanhe as suas opiniões sobre o aborto ou a eutanásia estivesse diminuído na sua condição religiosa.
De tudo isto, o mais lamentável é ter sido o Presidente da República a trazer para um debate político e penal a questão religiosa, coisa que quase todos os atores políticos têm evitado. Ao fazê-lo, torna legitima a leitura de que os pedidos de fiscalização da constitucionalidade (um dia discutiremos se “lesão definitiva de gravidade extrema” são é indeterminada do que “malformação fetal” ou igualmente determináveis por médicos, sem que a lei tenha de ser mais precisa) não são movidos pelas dúvidas do jurista e os seus vetos pelas discordâncias do político, mas umas e outros por motivações religiosas. Ao apelar a participação dos católicos, e não do conjunto dos cidadãos, o Presidente apelou a combates religiosos em torno de leis penais. E se devemos recusar que posições morais, mesmo que maioritárias, restrinjam direitos individuais essenciais, ainda menos podemos aceitar que a fé de alguns se imponha como lei do Estado.
Felizmente, o país mudou mais do que Marcelo. A laicidade do Estado não é, para a esmagadora maioria dos católicos, um problema. É para alguns setores, que aparentemente incluem o Presidente. Perderam no referendo à despenalização do aborto, com a desastrada ajuda de Marcelo. Voltarão a perder se, como no aborto, tentarem transformar um debate sobre a lei penal num confronto religioso. É que os católicos continuam a participar na vida cívica, como antes. Apenas são mais autónomos. Porque católicos há muitos e muito diferentes uns dos outros. Não são, como não se espera que sejam em sociedades livres, um corpo político uniforme e obediente.»
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