23.12.22

A entidade reguladora não regula bem

 


«Agora que parece ter terminado o fascinante debate que se gerou a propósito da deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) sobre o facto de André Ventura não ter sido convidado para ir ao programa “Isto É Gozar Com Quem Trabalha”, gostaria de aproveitar esta altura em que já ninguém se interessa pelo assunto para finalmente participar. A primeira alínea da deliberação apresenta também o primeiro problema, uma vez que a ERC “delibera: a) Verificar que, durante o período eleitoral para as eleições legislativas de 2022, no programa ‘Isto É Gozar Com Quem Trabalha’, foram entrevistados todos os líderes partidários que tinham obtido representação parlamentar nas eleições anteriores com excepção do Partido Chega (…).” Esta é uma verificação que, infelizmente, não se verifica. A frase “foram entrevistados todos os líderes partidários que tinham obtido representação parlamentar nas eleições anteriores com excepção do Partido Chega” não é verdadeira, dado que o Partido Ecologista Os Verdes tinha obtido representação parlamentar nas eleições anteriores e o seu líder também não foi convidado. Ninguém chora pelas injustiças que os programas de entretenimento infligem ao PEV, e é provavelmente por isso que o ambiente está como está. Mas é com base nessa verificação que a ERC conclui, deliberando “recomendar à SIC a necessidade de compensar, se necessário, na restante programação, os desequilíbrios gerados num determinado programa em matéria de igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas, assegurando o pluralismo político-partidário nas suas emissões (…)”. Sucede que, se uma injustiça tiver sido de facto cometida, esta deliberação é extremamente insatisfatória. A ERC não obriga a SIC a compensar o injustiçado. Trata-se de uma mera recomendação. No entanto, ao passo que recomenda uma necessidade, acrescenta imediatamente: “se necessário”. Ora, recomendar uma necessidade se necessário não é bem recomendar. Suponhamos que, ao verificarmos que a nossa amiga Clotilde se prepara para sair de casa, lhe recomendamos a necessidade de, se necessário, levar um guarda-chuva. Não é uma recomendação útil porque a Clotilde, muito provavelmente, já sabia que as necessidades só são necessárias se necessário. Em princípio, não travamos amizade com pessoas que acreditam em necessidades desnecessárias.

Não é surpreendente que a recomendação seja tão vaga. Toda esta questão assenta numa conversa que é afluente do eterno debate sobre o poder do humor. Certos místicos acreditam que o humor e os programas humorísticos têm muito poder, apesar de não haver qualquer indicação nesse sentido. Ninguém formulou esse pensamento de forma mais eloquente do que o professor de economia da Universidade do Minho, Luís Aguiar-Conraria, aqui mesmo, no Expresso. Disse ele: “Sem o poder demonstrar, estou totalmente convencido de que a Iniciativa Liberal elegeu o seu primeiro deputado graças à prestação do seu líder nesse programa.” Repare-se que Aguiar-Conraria não está levemente desconfiado ou até fortemente inclinado para acreditar em algo que não consegue demonstrar. Não, não: está “totalmente convencido”. Ao fenómeno psíquico de estarmos totalmente convencidos de uma coisa que não somos capazes de demonstrar costuma chamar-se fé. E, de facto, a responsabilidade da eleição do primeiro deputado da Iniciativa Liberal só pode ser atribuída ao programa “Isto É Gozar Com Quem Trabalha” se formos tomados por um fervor espiritual bastante intenso. Estávamos em 2019 e esse programa nem existia, nem era exibido na SIC, nem era líder de audiências. Carlos Guimarães Pinto foi a um espaço televisivo chamado “Gente Que Não Sabe Estar”, que era o suplemento humorístico do “Jornal das 8”, na TVI. Nesse dia, uma quinta-feira, 3 de Outubro de 2019, a tabela dos programas mais vistos da televisão portuguesa ficou assim ordenada: em primeiro lugar, a novela da SIC “Nazaré”, com 13,8% de audiência; em segundo, a novela da SIC “Golpe de Sorte”, com 12,6%; em terceiro, “Jornal da Noite”, da SIC, com 11,5%; em quarto, o espaço “Tempo de Antena”, emitido na SIC às 19h52, com 9,2%; em quinto o jogo de futebol Feyenoord-FC Porto, na SIC, com 8,9%; em sexto, finalmente, o “Jornal das 8”, da TVI, com 8,8%. Portanto, nesse dia, Carlos Guimarães Pinto foi convidado de um espaço integrado num programa que teve menos audiência do que o “Tempo de Antena”, e teve uma prestação de tal modo notável que aqueles eleitores que definem o seu sentido de voto com base em coisas que viram em programas de entretenimento decidiram premiá-lo elegendo João Cotrim de Figueiredo, que não foi convidado e concorria por outro círculo eleitoral. É disto que Aguiar-Conraria está totalmente convencido.

Há duas ou três coisas das quais, a propósito da influência do “Isto É Gozar Com Quem Trabalha”, eu estou totalmente convencido. Por exemplo, estou totalmente convencido de que o líder do PEV não foi ao programa e o seu partido desapareceu do Parlamento. Estou totalmente convencido de que o líder do CDS foi ao programa e o seu partido também saiu do Parlamento. Estou totalmente convencido de que o Ventura não foi e o seu partido subiu de 1 para 12 deputados. Estou totalmente convencido de que João Oliveira foi e não só não conseguiu ser eleito como o seu partido caiu de 12 para 6 deputados. E felizmente posso demonstrar tudo.

No dia 12 Dezembro de 2020, no Twitter, André Ventura informou o país do seguinte: “Deus confiou-me a difícil mas honrosa missão de transformar Portugal.” O Criador, no âmbito da sua actividade de administrador do universo, teria dedicado algum do seu tempo a pensar omniscientemente em Portugal e, após observação cuidada, concluíra que o país precisava de uma transformação e que a pessoa mais bem colocada para a operar seria aquele comentador de futebol que discutia foras-de-jogo com Aníbal Pinto na CMTV. É este mesmo candidato, cuja carreira é patrocinada por um ser omnipotente, que se queixa de não ser convidado por um palhaço para um programa de entretenimento. Talvez a ERC devesse recomendar a Nosso Senhor a necessidade de compensar os outros candidatos. Se necessário, evidentemente.»

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2 comments:

António Alves Barros Lopes disse...

Se a palermice matasse, essa tal ERC já tinha morrido num capotamento de tractor!
- Mas pode suicidar-se, em alternativa!

Monteiro disse...

Se a ERC é assim, adeus sr. prior.