19.5.24

Pode um deputado dizer que os judeus são uma etnia “mais burra”?

 


«Eu não sei se as mesmas pessoas que andam a aplaudir Aguiar-Branco por ter ignorado as palavras racistas de André Ventura sobre os turcos – o direito à liberdade de expressão, não censurar as palavras de nenhum deputado – seriam as mesmas que estariam a rasgar as vestes e a condenar o presidente da Assembleia se permitisse discursos anti-semitas no Parlamento. Nem todas.

Muitas achariam absolutamente natural que o povo judeu fosse caracterizado como “acumulador de dinheiro” ou outra coisa qualquer, da mesma maneira que acharam natural que José Pedro Aguiar-Branco, que já chamou a atenção de André Ventura em alguns episódios menores passados no plenário, tivesse achado que não devia dizer qualquer coisinha.

Obviamente, não se pedia a José Pedro Aguiar-Branco que chamasse a polícia, como o presidente da Assembleia da República deu a entender na conferência de imprensa posterior ao episódio. Pedia-se apenas a Aguiar-Branco que tivesse noção de que o seu cargo não serve apenas para indicar quem está em uso da palavra e contar os minutos das intervenções. Se fosse só isto, poderíamos substituí-lo por inteligência artificial, gastava-se menos um ordenado e deixávamos de ter uma segunda figura de Estado inútil.

Ao presidente da Assembleia cabe zelar pelo decoro, linguagem menos própria (definida de acordo com as convenções sociais, que, também essas, provavelmente também atentam contra a liberdade de expressão, segundo os libertários destes dias), ofensas. Não achar que nessa linguagem “menos própria” e nas ofensas estão incluídas referências com potencial xenófobo (os turcos não são conhecidos por ser muito trabalhadores, os países do Sul da Europa gastam o dinheiro todo em vinhos e mulheres, etc.) é escancarar as portas a todo e qualquer discurso racista.

Quando Alexandra Leitão – e bem – perguntou ao presidente da Assembleia da República se, doravante, os deputados “podem dizer que uma determinada raça ou etnia é mais burra ou preguiçosa”, a resposta de José Pedro Aguiar-Branco foi clarinha: “A meu ver, podem.”

É evidente que, se a etnia visada fossem os judeus, a reacção não seria esta. Não estou a ver José Pedro Aguiar-Branco a permitir na Assembleia insultos aos judeus (mas confesso que já estou por tudo). Sinceramente, acho que não o fará, porque carrega a culpa que todos nós, europeus, carregamos por termos permitido, no século XX, o Holocausto.

Mas este precedente de Aguiar-Branco abre a porta a que o Chega reproduza – perante o silêncio do presidente da Assembleia da República – as teorias de conspiração anti-semitas que o número 1 do partido às europeias, Tânger Corrêa, exprimiu numa entrevista ao Observador. Na altura, o candidato da AD, Sebastião Bugalho, condenou, bem, o discurso de Tânger Corrêa. Estranhamente, não houve muito mais gente a vir a terreiro condenar.

O que se está na passar na Europa e na América (menos em Portugal) é que qualquer discurso contra a carnificina que Israel está a fazer na Faixa de Gaza é, imediatamente, considerado anti-semita e mandado calar. Não foi só Jeremy Corbyn que perdeu o direito a ser deputado por causa de umas chalupas acusações de anti-semitismo – foram vários dirigentes do Labour. A Europa protege Israel como se fosse seu filho e vira os olhos para o lado quando se fala de Gaza. Os direitos humanos sempre tiveram dois pesos e duas medidas, aqui e em qualquer outro lado do mundo.

O coração do Ocidente só tem espaço para uma culpa: o extermínio dos judeus. O extermínio de outros povos, a escravatura, o racismo contra outras etnias que não a judaica, os massacres do colonialismo são “história”. Com a direita populista radical a ganhar força na Europa, uma parte dela anti-semita, provavelmente até a culpa em relação aos judeus será apagada.

E José Pedro Aguiar-Branco já estendeu a passadeira vermelha para que possam ser feitas declarações anti-semitas na Assembleia da República. Pior era impossível.»

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