2.12.22

Migrantes, o paradoxo da legalidade

 


«Quando uma rede de trabalho escravo e de tráfico de seres humanos é descoberta, como sucedeu agora em Odemira, tendemos a focar-nos no papel hedion¬do de indivíduos e redes que exploram, de modo indecente, pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade extrema. Raramente se aborda de que modo é que as políticas públicas de migrações contribuem ativamente para a criação dessas situações de vulnerabilidade.

Desde 2007 que a legislação portuguesa tem incluído, sucessivamente, várias possibilidades de regularização de migrantes, tanto por razões humanitá¬rias como por motivos ligados às necessidades de fortalecer o mercado laboral. Esta política generosa surge em contraciclo com orientações da União Europeia, que tem sucessivamente pedido aos Estados-membros que se abstenham de promover programas de regularização em massa de migrantes.

A entrada ou permanência ilegal no território constitui, em princípio, uma fonte de vulnerabilidade do trabalhador migrante. Contudo, também os migrantes que têm a sua situação regularizada estão sujeitos a tráfico e exploração. Na verdade, estes riscos muitas vezes dependem de outras circunstâncias, relacionadas com a capacidade de acolhimento do Estado, o possível ‘efeito de chamada’ de regimes de regularização excessivamente generosos, a falta de fiscalização e a dependência dos trabalhadores face aos empregadores ou agências que os recrutam. Surge então um paradoxo, designado, na literatura académica, por ‘paradoxo da legalidade’: países que decidem abrir as suas fronteiras à migração controlada, adotando políticas que, à partida, se revelam amigas dos direitos humanos, acabam por contribuir para aumentar a vulnerabilidade dos migrantes e deixá-los mais suscetíveis a situações de tráfico e exploração.

A estratégia de adoção de políticas generosas de regularização impunha ao Estado português deveres sérios de proteção desta camada frágil da população que se dispôs a acolher, não apenas por motivos humanitários, mas também por razões ligadas a interesses económicos nacionais. A professora Ana Rita Gil, da Universidade de Lisboa, analisou a imigração da zona de Odemira, confrontando-a com as sucessivas alterações à lei de imigração, e concluiu que as mesmas comportavam riscos de efeito de chamada e de convite à sujeição a situações indignas, tendo em vista a regularização ao fim de um ano. Alertou também para a falta de capacidade do Estado português para implementar estas políticas. Infelizmente, não estava errada.

É ao Estado que compete fiscalizar quem entra nas nossas fronteiras, de que modo, quem é contratado e em que termos. Num mercado de trabalho caracterizado por um desequilíbrio estrutural de poder, como é o trabalho em estufas, composto essencialmente por trabalhadores migrantes, é o Estado que deve garantir a existência de legislação e serviços de fiscalização tendo em vista a prevenção de trabalho forçado.

Sobre Odemira, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, referiu que se trata de um problema estrutural que mostra que ‘a sociedade tem vindo falhar’. Uma claríssima lavagem de mãos, digna de Pilatos. Quem tem vindo a falhar estruturalmente é o Estado, não a sociedade.»

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