«A cada geração a sua guerra e nós estávamos há muito sem ter a nossa. Houve, é certo, o terror da Al-Qaeda com os barbudos das bombas, mas era ocasional e intermitente, e o Iraque e o Afeganistão sempre foram demasiado distantes e exóticos para os sentirmos como verdadeira ameaça. Agora não, é diferente, é na Europa aqui ao lado, com Yuris-canalizadores, crianças loirinhas e mães com lábios de pato que mais parecem modelos.
O ódio é uma emoção cansativa, disse Patricia Highsmith, que dominava o assunto, e é facto que nem passou uma semana e já estamos todos arrasados de tanto abominarmos Putin. Como sempre sucede, os problemas de véspera, aquela multa da EMEL, o carro na revisão, a tarde com a chata da sogra, a seca e os calores climáticos, até a saudosa covid, parecem-nos hoje pequenos, fáceis de manejar. Às tantas, nos momentos mais pesados, até sentimos inveja daqueles que já morreram e, outras vezes, remorso por termos gerado filhos em mundo tão desgraçado.
O mais doloroso de tudo é que, como no fim dos casamentos ou nos cancros terminais, a guerra obriga a que nos confrontemos connosco próprios e com o que fizemos ou deixámos de fazer para chegarmos aqui. Putin é nosso inimigo e está em guerra connosco desde que subiu ao poder - há mais de 20 anos, portanto -, nós é que não quisemos ver. De pouco adianta agora culparmos a "fraqueza" dos líderes que temos e escolhemos, pois a culpa é nossa e de todos, que em troca de bela vida compactuámos com o gás trazido de longe, os iates dos oligarcas, os vistos a brilhar de doirados, o pântano das offshores. Sobretudo, é nossa a culpa de vivermos na ilusão de que poderíamos ser amigos e fazer negócios com um ditador que nos odeia, e que sempre nos quis destruir.
A culpa dos nossos líderes é apenas, mas grave, a de não terem visto nas estrelas o que nelas há muito já estava escrito: os avisos feitos pela Rússia desde 2007 de que jamais aceitaria a expansão da NATO para a Ucrânia; os precedentes da Geórgia e da Crimeia; a devastação bárbara da Chechénia (que, no limite, Putin poderá replicar agora em Kiev); a Síria e a Bielorrússia; a afirmação de Sergey Lavrov em 2015 de que a Ucrânia não era um verdadeiro Estado; o ensaio de enquadramento teórico publicado por Putin no ano passado, próprio de uma nação dada ao espírito; a deslocação em massa de tropas da Ásia para o Ocidente, nunca vista nos últimos 100 anos; o encontro de Putin e Xi em Fevereiro transacto, o primeiro desde 2019, e a "parceria" que daí nasceu; o acordo bilateral com o Azerbaijão poucos dias antes da ordem dada para invadir a Ucrânia.
Perceber a estupidez dessa invasão, quando para o Kremlin teria sido mais avisado e sensato para Moscovo abocanhar tão-só o Donbass, é tarefa para os "especialistas" em geopolítica, que têm proliferado como coelhos nas televisões dos últimos dias, mas será erro pensar que a racionalidade de Putin é igual à nossa, pois ele e milhões dos seus compatriotas estão sincera e genuinamente convictos de que a Ucrânia é russa e é deles e não tem razão de existir por si própria. O plano imediato parece ser hoje claro, entrar pela Ucrânia adentro, pôr lá um governo-fantoche ("desnazificar"), firmar uma "esfera de influência" e sair rapidamente e em força, com escassas sanções ocidentais, para mais suportadas por um fundo de 630 mil milhões de dólares entesourados para a ocasião. Por trapalhadas logísticas e resistência dos Yuris, a coisa tem-se embrulhado, o que significa que a ofensiva seguinte será ainda mais poderosa e sangrenta, uma catástrofe. Ponto pouco falado, contudo, têm sido os russos da Ucrânia, 8 milhões de pessoas, que não vemos nas estradas a saudar os invasores. Quantos foram evacuados? Significa isto que, a par da catástrofe humanitária a Ocidente, 600 mil refugiados and counting, outra haverá a Leste, mais oculta, menos falada? Ao entrarem nas cidades, com 22% de russos, como saberão os soldados sobre quem disparar? Putin, dizem os entendidos, sofre de presbitismo, um defeito que dificulta a vista ao perto, o que talvez explique o seu estranho "olhar de alumínio" (Anna Arutunyan), mas sobretudo o atoleiro em que a Rússia se meteu, pois ninguém de bom senso imagina viável governar um país em escombros, minado pela guerrilha urbana.
É útil e inteligente que, na frente interna, não nos dividamos em recriminações políticas e ajustes de contas ideológicos que só destroem a espantosa e miraculosa unidade a que chegámos, é certo motivada pelo medo e pelo pânico, mas também por certo surpreendente para Putin, o triste czar falhado. Lá fora, a rede de cúmplices é vasta e tentacular, abrange Salvini e Le Pen, a amiguinha de Ventura, muitos republicanos da América, doações aos conservadores ingleses; por cá, são poucos, uns caricatos ignóbeis, e serão dizimados a seu tempo. Mas, por ora, unidade.
Também é útil e inteligente que mostremos aos russos que os amamos e à sua cultura europeia e que temos compaixão pelo seu sofrimento passado, presente e infelizmente futuro. A Rússia é grande e antiga, maior do que um déspota e a sua camarilha, e fazer bullying ao povo comum é fazer o jogo da propaganda do Kremlin, alimentar o ódio que perpetua o tirano no poder. A Rússia do século XXI não é a Rússia da Guerra Fria, tem tablets e smartphones, banda larga de internet, uma economia de mercado, tem muito mais a perder do que nós, tem muito mais a perder do que há 50, 60 ou 70 anos, quando era ainda mais fechada e atrasada do que é hoje. Para mais, há presidenciais em 2024, outra das razões para esta aventura da Ucrânia, e mesmo não sendo eleições como as nossas temos de apoiar desde já as alternativas democráticas, Navalny e Muratov, e as forças da liberdade, que existem e precisam que as ajudemos, e já. Nas legislativas do ano passado, o Rússia Unida de Putin caiu para 49% e perdeu 19 lugares no parlamento, e é nisso que temos de trabalhar com saber e arte, sem gerar suspeitas de que queremos dominar a Rússia, o que de facto não queremos nem nunca deveremos querer. Nas reuniões televisivas, Putin quis mostrar à Rússia e ao mundo que era ele quem mandava, aproveitando de caminho para entalar os próximos e os oligarcas, aqueles que devemos visar. Nos últimos dias, dizem os analistas, Putin tem dado preocupantes sinais de descontrolo emocional, e de facto é nas emoções que esta guerra se trava, mas de parte a parte, e já vimos que as emoções também estão ao rubro do nosso lado, e que os cidadãos da Europa não toleram menos dos seus líderes do que uma batalha sem tréguas.
Por vezes, morrer não é o pior: na Ucrânia morrerão milhares, Zelensky será um mártir, mas os russos sofrerão bem mais. Além das sanções económicas, que devem ser ainda mais apertadas, sobretudo fiscalizadas na sua aplicação efectiva, temos de apostar nas sanções simbólicas, culturais e sociais, ir ao coração do dia-a-dia, tirar-lhes os nossos produtos, os nossos bens de consumo, o desporto e o cinema, as celebridades. Influencers e tiktokers do Ocidente, ao ataque. Nas redes, Ronaldo tem 500 milhões de seguidores, use-os agora, esta é a hora. É óbvio que, depois desta barbárie, a Rússia só voltará ao convívio depois da queda de Putin, mas, se formos argutos e frios, talvez isso suceda mais rapidamente do que julgamos (neste momento, imagino, os serviços secretos ocidentais estão a ter terreno fértil para recrutar agentes...).
É óbvio que vamos vencer Putin pois somos mais fortes e melhores do que ele e por outra razão singela, mas decisiva: a Rússia quer ser como nós, nós não queremos ser como ela (nem nunca quisemos).
Ao ameaçar com a bomba, Putin assinou o seu destino. Até aí, podíamos (devíamos) dar-lhe uma escapatória que lhe permitisse regressar a casa sem perder a face, para então se entregar nos braços da China e ser devorado por ela; sobretudo, retornar a Moscovo sem perder a aura de macho perante o seu povo, um povo que, com razão ou sem ela, sente que o ultrajámos e que o temos maltratado. A partir do aceno da bomba, porém, o Ocidente não pode mais dar-se ao luxo de viver com quem o ameaçou de extinção e Putin terá de cair. Por isso a guerra será longa, mais longa do que pensávamos.
Tirando o tal risco atómico, a Rússia não é difícil, difícil mesmo é a China, igualmente inevitável. Mas essa será, esperemos, guerra para a geração vindoura.
PS - No meio de tanta tragédia, resta-nos a consolação do sorriso e de pensarmos que os russos eram mais bem governados por um bêbado como Ieltsin; e que foi preciso vir da Ucrânia um comediante patusco para abrir os olhos ao mundo e dar-lhe uma lição enorme - de coragem e moral.»
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