10.3.22

A minha irmã ucraniana



“Ao longe, vi algo. Quando me aproximei, vi que se movia.
De mais perto, vi que era um homem.
Face a face, vi que era meu irmão.»

(Provérbio berbere)

Hoje, a minha irmã ucraniana chora. Com desconhecidos deixa partir os filhos. Salva-lhes a vida. Um dia compreenderão. A minha irmã emudece. Arrancaram-lhe a alma, impuseram-lhe o trauma. Regressa ao trabalho. Quem cuida dos velhos que ficam? Ouve as bombas e os tiros, os gritos e os choros. Vê o medo, o desespero e as feridas. Cheira a destruição e a ruína, cheira a coragem. Relembra as palavras da poetisa Lesya Ukrainka: “Liberdade já não tenho, a minha boa sorte voou, só me resta uma esperança, a de regressar à Ucrânia.” A casa invadida, a casa profanada. Regressar à Ucrânia. Que a Ucrânia regresse.

Somos seres dotados de empatia. Sentir o que o outro sente e ter a capacidade de nos colocarmos no seu lugar, excluindo certos casos particulares, faz parte da natureza humana. É o nosso tal lado bom. Aquele que nos leva à compaixão, aquele que nos guia do sentir ao agir. Nos últimos dias, a onda de solidariedade que se elevou para ajudar o povo ucraniano foi admirável. Em contraste extremo com a visão do que a natureza humana também tem de pior.

Somos seres dotados de empatia, mas é capacidade imperfeita. Para nos colocarmos no lugar do outro precisamos de nos sentir próximos, e quanto mais o outro está longe mais árdua é a tarefa. É a imaginação que, por vezes, nos socorre.

Somos seres narrativos, diz o escritor franco-marroquino Rachid Benzine. Para dar a conhecer a sua investigação sobre o processo de arregimentação dos grupos de terrorismo islâmico, o autor escolheu contar uma história, através dos olhos de uma criança, no seu romance Voyage au bout de l’enfance. Benzine conhece bem os mecanismos de empatia, sabe que, para se colocar no lugar do outro, se não podemos estar face a face, a imaginação precisa de ser estimulada e a literatura é também, para esse fim, um excelente instrumento. Precisamos de histórias. E na cobertura mediática de tragédias emocionamo-nos mais quando histórias nos são contadas. Quando existem personagens, quando existe uma narração. Não é por acaso que nas campanhas de angariação de fundos de certas ONG vemos caras, vemos nomes, vemos trajetos de vida.

Podemo-nos emocionar mais com o desespero de uma pessoa do que com a de milhões, tudo depende se e como a história nos foi contada. Os casos de crianças como Rayan, que morreu preso no poço em Marrocos este ano, ou Aylan Kurdi, menino sírio que morreu afogado no Mediterrâneo em 2015, emocionaram o mundo inteiro. E, no entanto, sabemos que tantas crianças morrem no mundo todos os dias por causa de maus-tratos, fome, doença ou guerra. Mas, contaram-nos uma história. Uma história verdadeira. E que merece toda a nossa emoção.

Neste momento, na cobertura mediática dos refugiados ucranianos as histórias são omnipresentes. Há história e há quase face a face, podemos ver o desespero ao minuto, quase tocá-lo nas televisões em alta definição. A empatia encontra aqui as suas condições quase ideais. Mas existem outros obstáculos, não basta a história para nos sentirmos próximos, precisamos também de acreditar que, de facto, poderíamos estar nessa situação. Pensar a um dado momento: “este podia ser eu”. A proximidade geográfica da Ucrânia ajuda, o medo de uma guerra que contamine a Europa, o medo das armas nucleares, que levou até à procura de comprimidos de iodo em França ou em Portugal. Mas também ajuda a sensação de proximidade social, cultural, religiosa ou cromática. Não é por acaso que vários jornalistas ou políticos fizeram a isso menção, como Peter Dobbie da Al Jazeera ou Daniel Hannan do Daily Telegraph: “eles são como nós”, “pessoas europeias de olhos azuis e cabelos loiros”, “um país civilizado”, “pessoas prósperas de classe média”, “parecem-se com qualquer família europeia que poderia ser nossa vizinha”, “a guerra já não é algo relativo a populações empobrecidas e distantes. Pode acontecer a qualquer pessoa”.

Estas declarações são imorais, mas são realistas. Estas pessoas também sabem como funciona a empatia. Mas talvez não saibam que a empatia é capacidade flutuante. Talvez não saibam que, por exemplo, em Portugal já vivem ucranianos e não consta que não sofram de discriminação. E talvez nunca tenham ouvido o nome de Ihor Homeniuk.

A empatia não chega, precisamos também de princípios. E o princípio de que “uma vida é uma vida e tem o mesmo valor do que qualquer outra” corrige, em parte, as nossas carências. Podemos expandir a nossa capacidade de empatia, se derrubarmos os muros racistas, xenófobos e intolerantes que não nos permitem ver que o outro, ao longe, afinal é nosso Irmão.»

Luísa Semedo

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