«Em Kharkiv, uma das maiores cidades da Ucrânia, Vera Lytovchenko vestiu-se a rigor, calçou os seus melhores sapatos e pegou na arma que melhor controla, o violino. E tocou! Tocou tal qual Wallace Hartley tocou, enquanto o Titanic se despedia da sua primeira viagem, que seria também a última.
A música que se ouve nas ruas infelizmente abafa aquela que sai do violino de Vera. É uma música orquestrada de forma pesada e violenta tocada pela filarmónica russa em crescendo desde o dia 24 de fevereiro. É tocada à desgarrada, sem pauta e sem harmonia. É tocada sem tom e sem ritmo. É uma música rude que ninguém quer ouvir. Pelo contrário, Vera pegou no violino e tocou de forma harmoniosa e melódica para um público que não queria assistir a este espetáculo. Tocou para um público que viu naquelas notas um escape. Uma fuga à realidade.
Alguns sobreviventes do Titanic, contaram que enquanto fugiam nos botes salva-vidas ouviam aqueles oito heróis que tocavam música em cima de música à medida que o navio desaparecia. E com o navio, as melodias, os instrumentos e os próprios músicos acabaram por se silenciar no fundo do Atlântico.
Um ato de coragem, foi o que se disse na época. Morreram, mas ficaram imortais. Imortais através da música. Imortais através da arte.
Não sei o que Vera está a tocar, mas acredito que a fricção das cordas e o seu dedilhar consiga transportar o pensamento dos ouvintes para outro lugar. Pelo menos por uns momentos, e que tenham o poder de silenciar a filarmónica russa.
Enquanto nós ouvimos a música dos bombardeiros através dos media, há um país que se afunda. Mas numa cave há um grupo de sobreviventes que assiste a um concerto particular. Não decidiram ir. Não compraram bilhete, mas estão lá.
Haverá certamente música a ser tocada em outros pontos do mundo, mas essa, ao que parece, estamos a ouvi-la mal. Talvez porque a tocam baixo, ou porque a tocam numa geografia mais longínqua. Enfim...
O violino de Hartley foi recuperado e está agora num museu para contar uma história que culminou com a morte do artista.
A minha esperança é que possa ser Vera, esta valente soldada ucraniana, a contar a sua própria história, assim que termine de tocar.»
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