«Na semana passada, no podcast Today in Focus, do britânico The Guardian, o jornalista Oliver Bullough falava do love affair britânico com o dinheiro russo. Bullough dedicou parte da sua carreira a cobrir as ligações de Londres aos oligarcas russos e publicou esta semana o livro Butler to the World, literalmente “mordomo” do mundo, que explica como o Reino Unido “ajuda as piores pessoas do mundo a lavar dinheiro, a cometer crimes e a escapar” – assim reza o subtítulo do livro que está na minha lista de leituras próximas.
O dinheiro sujo de oligarcas russos e outros ajuda os setores imobiliário e financeiro, por exemplo. Mas não só. Alisher Usmanov, um dos oligarcas de Putin agora sancionados, já investiu no Facebook, na Apple e no Twitter. Mikhail Fridman investiu na Uber. Alexei Mordashov é dono de um terço do maior operador turístico europeu, Tui. A lista de oligarcas que estiveram nos órgãos de gestão de museus famosos, como os nova-iorquinos Museu de Arte Moderna e Guggenheim ou a londrina Tate Modern, emprestaram coleções milionárias ou doaram montantes não menos estratosféricos é vasta: Vladimir Potanin, Petr Aven, Leonid Mikhelson. E, claro está, o futebol: Chelsea, AS Monaco, Cercle Brugge.
A verdadeira extensão da rede de investimentos destes homens-fortes de Putin nas economias das democracias liberais ainda está por determinar. Muito deste dinheiro é canalizado através de complicadas redes de empresas detidas em jurisdições offshore, o que dificulta a identificação dos beneficiários últimos de cada investimento. Chega a ter contornos caricatos: o superiate Scheherazade, no valor de 700 milhões de dólares, está neste momento atracado num porto italiano, sem que as autoridades saibam se o devem confiscar, por não se saber a quem pertence – os rumores dizem que é do próprio Putin.
Estas complexas redes de interesses económicos, empresas, contas bancárias e testas-de-ferro não nascem por geração espontânea. Nem são montadas e geridas pelos próprios oligarcas. Há uma indústria de serviços nos nossos países que vive disto, que inclui escritórios de advogados, bancos, consultores fiscais, auditores. Alguns são grandes empresas, outros indivíduos isolados. Os ganhos de cada um destes facilitadores (que são poucos) são substanciais. Ganhos concentrados numa elite bem relacionada é receita para uma mudança lenta. Foi precisa uma guerra infame para começarmos a levar isto mais a sério – e ainda há tanto por fazer!
Alegremo-nos, pois, porque já temos um português na lista de bilionários da Forbes. Roman Abramovich, que se naturalizou num processo de contornos pouco claros, agora sob investigação da Procuradoria-geral da República. É público que foi um dos maiores financiadores do Museu do Holocausto, um espaço gerido pela Comunidade Judaica do Porto, que certificou as origens lusas do oligarca. Há também 18 edições mal explicadas na página da Wikipedia dedicada a Roman, feitas pelo museólogo e arqueólogo da dita associação, entre junho e novembro de 2021, período que coincidiu com o processo de obtenção da nacionalidade.
Abramovich tinha um interesse evidente neste passaporte europeu, numa altura em que a pressão para sanções já subia devido à repressão do movimento oposicionista de Navalny. Abramovich jogou pelo seguro. Menos de um ano depois de se ter tornado português, foi efetivamente sancionado pelo Reino Unido esta semana.
No capítulo das sanções aos oligarcas russos, o Governo português e o Banco de Portugal têm sido lacónicos. Afirmam que têm implementado as regras europeias, sem mais. Há várias perguntas para as quais gostaríamos de ter reposta, como o montante de ativos financeiros e imobiliários, ou eventuais participações em empresas, que tenham sido abrangidos pelas sanções. A informação pública é escassa. A VTB capital, cuja casa mãe, o Banco VTB, foi sancionado na União Europeia e está fora do sistema SWIFT, é acionista do Banco Finantia. Um tweet de Rui Pinto de há uma semana dava conta de um avião privado português utilizado por Alexander Mikheev, CEO da empresa Rosoboronexport, exportadora de armas que já está na lista das sanções europeias desde a invasão da Crimeia. No caso de Roman Abramovich, era mesmo importante que o Governo nos explicasse de que forma a nacionalidade portuguesa o vai eventualmente proteger de algumas consequências das sanções britânicas. Pode até ser que não proteja, ou apenas em parte – mas que ninguém nos diga nada a este respeito é inaceitável.
Isto não tem nada a ver com a reparação histórica dos judeus sefarditas. Tem a ver com uma legislação laxista, através da qual o Estado português delegou numa organização privada a verificação das condições para a atribuição da nacionalidade, sem mecanismos de controlo que garantam a aplicação isenta da lei. Em janeiro, a Frente Cívica pediu ao Instituto de Registos e Notariado informação estatística que permita avaliar a forma como o Estado está a controlar a aplicação da lei. Ainda antes deste pedido, o IRN tinha já avançado com um inquérito sobre o processo do nosso compatriota Roman, cujos resultados sairiam em fevereiro. Já lá vão dois meses, e do IRN não temos notícias. Nem acerca do justo e urgente pedido da Frente Cívica, nem do dito inquérito.
Volto, então ao podcast e a Oliver Bullough. Numa das partes da conversa que mais me interpelaram, falava do perigo para as nossas democracias de acolher estas pessoas pelas razões erradas, isto é, devido à sua riqueza. Bullough dizia que os super-ricos de países não democráticos estão habituados a conseguir privilégios devido à sua proximidade com os poderosos, em vez de seguirem as regras das pessoas comuns. Isso corrói a essência da nossa vida democrática, assente no princípio de que todos somos iguais perante as instituições e as leis do país.
Não me tenho cansado de pensar nestas palavras a propósito da forma como o meu país estendeu o tapete vermelho a um oligarca russo do círculo mais próximo de Putin, que se tornou multibilionário à custa do povo russo. E de como isto contrasta com o trato reservado a um trabalhador humilde ucraniano que vinha para Portugal à procura de um trabalho que lhe permitisse dar uma vida melhor à sua família.
Fez ontem dois anos que o ucraniano Ihor Homeniuk chegou a Portugal. Faz este sábado dois anos que morreu às mãos do Estado português. Pior: as autoridades do país, tão afáveis com as ilicitudes de Roman, varreram o crime que matou Ihor para debaixo do tapete durante nove longos meses, até ao puxão de orelhas público da comissária europeia Ylva Johansson.
O vício do dinheiro sujo verga as nossas democracias à lógica do homem forte. O país que assassinou Ihor é hoje porto de abrigo para o bilionário cujos negócios sujos financiam a guerra sangrenta de Putin contra o povo e a família de Ihor. Somos cúmplices.»
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