15.10.23

Os “anti-semitas” e a honra perdida de Ursula von der Leyen

 


«Ursula von der Leyen foi a Israel na sexta-feira, com Roberta Metsola, a presidente do Parlamento Europeu, e disse a Israel para fazer o que quisesse aos palestinianos, que a Europa apoiava cegamente.

A única versão benévola das inacreditáveis declarações de Von der Leyen, ao lado de Benjamin Netanyahu, é o facto de, enquanto cidadã da Alemanha, lhe ter assaltado a culpa do Holocausto, levado a cabo pelos seus antepassados.

Percebo o sentimento de culpa transgeracional, também me sinto culpada pelos crimes do colonialismo e, tal como Ursula com o Holocausto, só soube a posteriori.

A questão é que a quantidade de sentimento de culpa e remorso que um europeu consegue abraçar é finita e no nosso arsenal de culpa colectiva só cabe uma vítima – os judeus, perseguidos durante séculos por motivos religiosos e de racismo, que culminaram nos horrores do Holocausto.

Esta é a versão benévola: a outra é que Ursula von der Leyen prepara-se, à semelhança de muitos na Europa, no Reino Unido e nos Estados Unidos, para ignorarem tudo o que se passou antes do ataque carniceiro do Hamas a Israel há uma semana. E não estão muito preocupados com o que se passou entretanto e se vai passar depois.

Até Anthony Blinken, o secretário de Estado do país cujo apoio à vingança de Israel seria automático, conseguiu lá pôr um “mas” que Ursula von der Leyen decidiu não colocar: “A nossa humanidade – o valor que atribuímos à vida humana e à dignidade humana – é o que nos torna quem somos. E é um dos nossos maiores pontos fortes. É por isso que é tão importante tomar todas as precauções possíveis para evitar ferir civis. Por isso lamentamos a perda de todas as vidas inocentes, de civis de todas as religiões, de todas as nacionalidades, que foram mortos.”

É uma citação comprida que pelo menos afirma algo que Ursula podia escolher dizer – no mínimo, cumprir a decisão que tinha saído da reunião dos ministros europeus de terça-feira – e que preferiu não fazer e envergonhou profundamente a União Europeia.

Neste dia em que escrevo, a UE prepara-se para apoiar toda a selvajaria prevista na contra-ofensiva que Israel prepara, ainda que Josep Borrel tenha vindo amaciar as declarações de Ursula von der Leyen.

O Hamas procedeu a uma acção terrorista criminosa, Netanyahu – a praticar terrorismo de Estado há muito tempo e a liderar um país onde vigora o apartheid – vai responder até conseguir exterminar os árabes da Palestina (não vai ser só o Hamas). E que, como Jorge Almeida Fernandes aqui bem lembrou, nasceu com o apoio de Israel para debilitar a OLP – Organização para a Libertação da Palestina.

Se Ursula ainda pode ter o “benefício da dúvida” da culpa transgeracional, Rishi Sunak, o primeiro-ministro britânico, está agora a aproveitar o ataque do Hamas a Israel por razões estritamente políticas: este sábado fez um comunicado em que ignorou os civis palestinianos e as resoluções da ONU continuamente violadas por Israel. Segundo o Guardian, os trabalhistas estão apreensivos com o risco de que Sunak lhes cole o rótulo de “anti-semitas”, o que pode ser prejudicial nas próximas eleições. Keir Starmer, que afastou o anterior líder Jeremy Corbyn por alegado “anti-semitismo” e agora o proibiu de se recandidatar sob a bandeira do Labour, está a provar do seu próprio veneno.

O apelo a que não se politize a guerra já está perdido. “Don’t”, disseram Biden e Blinken obviamente com outros objectivos. Mas aqui na Europa, “they do”.

O nosso “doer” – fazedor – da política de usar a guerra para obter ganhos políticos é Carlos Moedas, o presidente da Câmara de Lisboa, que esta semana acusou “a extrema-esquerda” de “conivência com terroristas”, com discurso que “roçou o anti-semitismo, a pior forma de racismo”. A acusação de anti-semitismo está a começar a vulgarizar-se e é o pior serviço a Israel que qualquer pessoa com responsabilidades políticas pode fazer. Antes fôssemos todos animais: haveria mais empatia, se tivessem sido 3000 gatinhos mortos em Israel e na Palestina e não o número de pessoas de carne e osso que já foram mortas dos dois lados.

Os termos da discussão pública – mesmo nas mais altas instâncias, a começar pela presidente da Comissão – são indignos e limitam-se à desumanidade que é a de cada um escolher o seu morto. Isto é a barbárie.»

.

2 comments:

Fenix disse...


"...são indignos e limitam-se à desumanidade..."

Como se o animal humano fosse um poço de virtudes e depois há os que "degeneram"!

Pela parte que me toca lamento pertencer a esta espécie, e já nada me surpreende no que toca à "desumanidade" deste animal!

Marques Ribeiro disse...

Um bom artigo que, como jornalista séria, não podia deixar de abordar a questão palestiniana, só a partir de 7 de Outubro. Uma pequena nota; as grandes manifestações de apoio à causa palestiniana que ocorrem por todo o planeta e os seus efeitos em alguns países, também têm levado os EUA e outros a amolecer - quiçá temporariamente - o seus discurso inicial de apoio sem limites à invasão da Palestina por parte de Israel.
António Ribeiro (conterrâneo da jornalista)