«Um vídeo com mais de 230 mil visualizações, no próprio dia em que foi publicado no Twitter, mostra um membro do Hamas a abater um helicóptero israelita. Outro, com mais de 3 milhões, exibe um edifício a ruir em Israel depois de um ataque do Hamas. Têm em comum serem falsos. O primeiro é retirado de um jogo de computador, Arma 3, o segundo mostra o resultado do ataque aéreo israelita à Torre Palestina, em Gaza. Não são casos isolados. Shayan Sardarizadeh, o jornalista do programa de verificação de conteúdos falsos da BBC, garante nunca ter visto tanto conteúdo falso a circular no Twitter ou no Tik Tok.
Nunca tivemos acesso a tantas imagens dos conflitos que mais ocupam o espaço público como na última década e meia – Síria, Ucrânia e Israel e Gaza. Com a viralidade das redes sociais, o seu alcance é instantâneo e quanto mais brutal mais longe e depressa chega. As partes beligerantes sabem-no. A Ucrânia revelou-se exímia no aproveitamento mediático das redes sociais, com uma gestão hiperprofissional da atenção e simpatia das opiniões públicas. O Hamas filmou e divulgou a barbárie do dia 7 de outubro como ponto central da campanha de choque e terror para forçar uma violentíssima reação israelita.
Gerou polémica, em 1991, a presença de jornalistas nas colunas militares norte-americanas na guerra do Iraque. Onde esse tempo já vai. Se a objetividade jornalística era vítima da voracidade dos ciclos noticiosos cada vez mais curtos da televisão por cabo, o aparecimento das redes sociais deixou o jornalismo para trás.
Grande parte das imagens que vemos nas televisões mundiais são fornecidas, direta ou indiretamente, pelas forças em conflito. Sejam soldados nas trincheiras do sul da Ucrânia, a filmar a dureza dos combates com câmaras no capacete, seja a violência indizível do assassinato de civis a sangue pelo Hamas, sejam os ataques aéreos a Gaza, demasiado parecidos com um jogo de vídeo. Cada uma serve um propósito diferente, consoante a estratégia de cada força, mas o objetivo é sempre o mesmo: transmitir a sua versão do conflito.
Não é por acaso que Israel condicionou o acesso à internet na faixa de Gaza. As razões são as mesmas que levaram a impedir o acesso da imprensa a Gaza, em 2008, numa das expedições punitivas que ciclicamente travam nesta pequena faixa. É assim que não vemos tantas imagens, nos media ocidentais, das vítimas em Gaza. Felizmente existe a Al-Jazeera (e mais algumas cadeias internacionais com meios para estar no terreno perigoso), o que até levaria a um debate interessante sobre a importância do peso económico de cada lado para contar uma versão de uma história.
Sem Internet e com condicionamento jornalístico, ficam são os vídeos que o exército israelita vai produzindo para canais como o Tik Tok. Neles vemos prédios em ruínas, esfumaçando depois das explosões, mas não há grandes planos das vítimas ou da dor e sofrimentos das suas famílias. Isto quando sabemos que na última semana já foram mortos mais palestinianos do que israelitas.
Quem controla as imagens que circulam no gigantesco mercado de difusão narrativa em que se tornaram as redes sociais controla não apenas a informação, mas a perceção pública. E quem controla a perceção controla quase tudo. As imagens moldam e deformam a visão que temos dos conflitos. Que, nesta permanente sucessão de imagens choque é visto como se tivesse começado na semana passada. Na Internet nada se perde, a não ser o contexto. Nada existe para lá do presente. Veja-se como, num conflito com dezenas de anos de amargurada história de ressentimentos, violência sectária e humilhação, a discussão é sempre feita como se tudo tivesse começado com a barbárie de 7 de outubro. Sem passado ou contexto.
Em Israel, a comparação com o Holocausto criou uma tal pressão política que a simples referência às vítimas civis em Gaza é tratada como uma traição abjeta. Ainda assim, é natural, num país que passou por um trauma. Mas não é só em Israel. A comparação com o ISIS espalhou-se como um vírus, apesar de qualquer pessoa que saiba alguma coisa sobre aquele conflito perceber que é falha em quase todas as condicionantes políticas, históricas e geográficas. A interdição do "mas", mesmo que esse "mas" se resuma a informação útil para a compreensão de um conflito com 70 anos, e não com uma semana, é o retrato perfeito da confusão entre firmeza moral e simplificação extrema de um conflito, como cada parte beligerante deseja sempre que seja. E acaba onde acabou sempre: na terraplanagem do pluralismo, na polarização perigosa e na porta aberta para a conivência com o abuso de um dos lados e com a limitação da liberdade.
Vale a pena ler o notável artigo em que o editor internacional da BBC explica por que razão o canal público britânico não chama “terroristas” ao Hamas. Pela mesma razão, adianta, que na Segunda Guerra Mundial, mesmo quando o país estava a ser bombardeado, nunca chamaram outra coisa aos alemães que não fosse “o”, evitando termos pejorativos. Porque a tarefa dos jornalistas é fornecer dados e factos e cada pessoa fazer a sua leitura. “Acima de tudo, dizia um documento da BBC sobre tudo isto, não deve haver lugar a discursos demagógicos. O nosso tom tinha de ser calmo e controlado”.
Concorde-se ou não com o caminho seguido pela BBC, ele nasce de uma discussão interna sobre a consequência e o poder das palavras e imagens que parece ter sido completamente eclipsado da maioria dos canais noticiosos. Numa luta com a velocidade, alcance e impacto, o jornalismo aproximou-se dos códigos das redes em vez do oposto. A exploração da emoção substituiu a escolha do que é relevante, a “folhetinização” o contexto. A emoção pode gerar boas novelas, não nos dá boa informação.
A forma como a história das crianças decapitadas ocupou o espaço comunicacional de meio mundo é reveladora desta pressão para a publicação imediata do mais chocante. Matar uma criança, seja de que forma for, é um ato de grotesca desumanidade e a decapitação é um acrescento macabro, mas não o mais relevante do ponto de vista moral. Mas a forma como foi comunicada interessa do ponto de vista jornalístico. Porque nos diz como a desinformação circula.
O que ficámos a saber é que tudo nasceu de um relato indireto, contado por um soldado, a um jornalista israelita, que mais nenhum colega internacional ouviu ou corroborou. O próprio exército israelita não confirmou, mas a história seguiu o seu caminho até ao próprio Biden, desmentido depois pela Casa Branca. A história está cheia de confirmações e desmentidose até apareceram outras fotos grutescas. Mas a generalidade da comunicação social divulgou uma informação sem fonte clara e verificação. Isto não torna os atos do Hamas menos horrendos. Apenas mostra os riscos de um jornalismo que funciona como caixa de ressonância da desinformação do lado que está, a cada momento, mais disposto a ouvir.
Doses massivas de emoção prendem as pessoas ao ecrã, mas minam o espírito crítico e diminuem o espaço para a dúvida. E sem dúvida não há contraditório. Não há o imprescindível “mas”, a mais importante conjunção para a democracia. A emoção alimenta maniqueísmo em vez da divergência racional, tantas vezes fundada no contexto e na história. E se há conflito que tem contexto e história é este.
É este ambiente mais uma vez emocional nos encaminha para a tentativa moralmente aberrante de criminalizar o apoio à causa palestiniana. Isto aconteceu com a guerra na Ucrânia, mas neste caso é muito mais perverso, porque o apoio à causa palestiniana (não ao Hamas) é o apoio às vitimas de uma continuada violação do direito internacional.
A Feira do Livro de Frankfurt cancelou o prémio literário que tinha previsto entregar a Adania Shibli, porque o tema do seu livro é o assassinato de uma jovem palestiniana pelo exercito israelita em 1949. França e Alemanha proibiram manifestações de apoio à Palestina, com vários manifestantes que empunhavam a bandeira desta nação a serem detidos. O governo do Reino Unido dá ordens à polícia para intervir no mesmo sentido.
A instauração do delito de opinião será sempre inaceitável e um perigoso sinal dos tempos que vivemos na Europa. Mas é ainda mais inacreditável quando estamos a falar de uma causa que tem o direito internacional do seu lado – desde 2015, a Assembleia Geral da ONU aprovou 140 resoluções criticando Israel. Durante o mesmo período, aprovou 68 resoluções contra todos os outros países, de acordo com o relatório da ONU Watch. É ainda mais incrível quando todo o mundo assiste à violação concreta, clara e indesmentível das leis da guerra, neste preciso momento, cometidas aproveitando a anestesia moral da emoção. Ao fim de quantos milhares de palestinianos mortos podemos ser solidários?
O jornalismo emocional não se limita a acordar consciências. Também as anestesia. O papel do jornalismo é acrescentar contexto e razão ao que é paixão e emoção. Por isso a BBC é tão exigente nos termos que usa. Infelizmente, disputando o mercado da atenção e não o da credibilidade, as televisões vão esmagando o pensamento crítico, a dúvida, a saudável adversativa, o contexto e a memória com uma enxurrada de imagens e lágrima e gritos e gestos de solidariedade... E nada é mais fácil de manipular do que a dor.»
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