28.5.21

Multitasking? Limitem-se a sorrir e acenar

 


«Sempre que uma característica intrinsecamente feminina começa a ter muita publicidade, já sei que, algures, vai acabar mal para mim. À conta da aparente superior capacidade das mulheres para suportar a dor, há muito desmentida, negaram-me o exercício do meu direito fundamental a um parto sem sofrimento. Esqueci-me do primeiro mandamento na administração da epidural: contorcer-se de dores logo à entrada da maternidade, com um ar de ataque de histerismo iminente se não nos derem algo nos próximos segundos. Em pleno século XXI, aterrei no século XIX — porque, lá está, temos todas uma experiência milenar do programa.

Há agora quem nos queira impingir o multitasking — uma competência inata para realizar diferentes atividades em simultâneo. Os homens, coitados, devido ao seu passado de caçadores e guerreiros, lá vão desempenhando uma série de tarefas ao longo do dia, mas só uma de cada vez. Em contrapartida, as mulheres, que ficavam na aldeia com um bebé em cada braço, desenvolveram uma aptidão natural para prestar atenção a várias coisas ao mesmo tempo. Talento que, afiançam-nos, herdamos todas à nascença.

Os estudiosos do evolucionismo garantem não se tratar de um mito, apesar de reconhecerem o condão da sociedade em aproveitar as qualidades femininas para nos esmifrar. Talvez esteja na hora de tirar as devidas ilações e agradecer bem-educadamente, mas declinar firmemente o elogio. Sabendo que vai acabar connosco a dar a sopa com uma mão, enviar um e-mail com a outra e balançar um bebé a chorar com o pé direito enquanto recitamos a tabuada com o mais velho, mais vale prevenir do que remediar — ao reparar no nosso pé esquerdo livre, alguém ainda se vai lembrar de o aproveitar para nos pedir a confeção de uma deliciosa e nutritiva refeição.

Não estou a denunciar um necessário complô do heteropatriarcado contra as mulheres. Antes do advento do GPS, quantos homens acabaram perdidos à custa do seu inato sentido de orientação? Um digno herdeiro dos caçadores e guerreiros só precisa do mapa para ir do ponto A ao ponto B. Jamais abrirá a janela para pedir ajuda, mesmo que acabe em Espanha a encher o depósito. Quantos têm em casa uma estante da IKEA torta por abandono das instruções a meio? Quando se trata, na realidade, de uma questão de geografia: só os portadores de genes escandinavos estão em situação de arriscar a montagem de um carrinho Råskog sem seguir todos os passos preestabelecidos — sim, há estudos a suportar esta afirmação.

Ao ouvir muito barulho a propósito de uma competência inerente ao género feminino, aconselha-se imediato ceticismo. Podem louvar à vontade a minha vocação para fazer tudo ao mesmo tempo, vou manter que só dou conta de um recado de cada vez — e com dificuldade. Caso insistam, estou em posse de vários estudos a demonstrar como homens e mulheres são igualmente improdutivos quando obrigados ao multitasking.

O mito pode, inclusive, pôr em risco a vida em sentido literal — e também tenho estudos a comprová-lo. Como a obstetra que assistiu ao parto acima descrito só acalmou com a chegada de uma parteira, cheguei a duvidar se não seria ortopedista. Perante a minha perplexidade, explicou que, sozinha, não conseguia concentrar-se devidamente na sua função principal e verificar se era necessário realizar um ato médico. Tivesse ela acreditado piamente que era capaz de fazer um parto enquanto mantinha um olho no monitor cardíaco fetal e algo podia, de facto, acabar a correr mal.»

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