26.5.21

A lição de dignidade da família Coxi



 

«A dignidade, quando nasceu, não era para todos. Durante séculos, o conceito de dignidade aplicava-se apenas a uns poucos, a que hoje chamamos — num vestígio da antiga acepção restrita da palavra — os dignitários. Um cardeal tinha dignidade de cardeal, um duque de duque. Quanto aos outros, que dignidade lhes era reconhecida ou atribuída? Nenhuma.

Demorou muito tempo até que a palavra dignidade ampliasse o seu sentido para abarcar toda a gente. Um primeiro exemplo será certamente o da Oração sobre a dignidade do homem, do renascentista Giovanni Pico della Mirandola, que nasceu em 1463 e foi assassinado em 1494. Começou aí a fazer caminho — um caminho longo e cheio de contra-curvas — a ideia de que todos os humanos têm uma dignidade que lhes advém do mero facto de serem humanos, e não de nenhum privilégio, herança ou cargo. Hoje esta ideia está logo no primeiro artigo da Declaração Universal de Direitos Humanos. Ocupa um lugar central em constituições do pós-guerra como a da República Federal da Alemanha, que declara que “a dignidade humana é inviolável” — não por acaso, porque se entende que os grandes crimes contra a humanidade do século XX foram, desde logo, violações do princípio de que todos os humanos têm dignidade. E está também na nossa Constituição, onde logo no Artigo 1.º se pode ler que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana”.

E assim não foi coisa pouca o que se decidiu esta semana num tribunal português, no qual se lavrou uma sentença num caso opondo uma família, de nome Coxi, ao partido de extrema-direita Chega e ao seu líder André Ventura. Recapitulemos os factos. Os Coxi são uma família de moradores no Bairro da Jamaica que tirou no início de 2019 uma fotografia com o presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Na recente campanha eleitoral para as presidenciais, no debate entre o recandidato Marcelo Rebelo de Sousa e o candidato da extrema-direita, este brandiu essa foto — de uma família de gente negra morando num bairro pobre — acusando Marcelo Rebelo de Sousa de se ter feito retratar com “bandidos” e a “bandidagem”. Os Coxi foram assim sujeitos, em pleno debate das presidenciais visto por milhões de pessoas em canal aberto de televisão, a um ataque às suas honras e reputações. Não porque houvesse qualquer indicação de que fossem “bandidos” ou “bandidagem”, mas porque o candidato da extrema-direita terá achado que, sendo os Coxi negros e morando num bairro pobre, não precisariam de ser tratados com a dignidade que têm e merecem.

Os Coxi poderiam ter encolhido os ombros e deixado passar aquele ataque humilhante, atribuindo-o ao triste estado da política e do espaço público na nossa época. Também poderiam ter escolhido ter pedido uma indemnização pecuniária — a que teriam todo o direito — pelos danos aos seus bons nomes e reputação. O caminho que escolheram não foi um, nem o outro, mas o mais trabalhoso: os Coxi foram a tribunal exigir, não dinheiro nem uma indemnização material, mas um pedido de desculpas e uma retractação pública ao político da extrema-direita e ao seu partido. Não quiseram nada de material para eles, mas apenas a garantia de que a justiça defenderia os seus direitos individuais e coletivos à dignidade. Ao fazê-lo (com o apoio voluntário e não-remunerado da sua advogada Leonor Caldeira) os Coxi estiveram a trabalhar por nós todos — pelo nosso direito a um espaço público um pouco mais salubre, menos infetado pelo racismo e pelo oportunismo de vigaristas políticos.

Chegados aqui, o tribunal poderia ter feito o que muitos defendem que se faça com o partido da extrema-direita e com o seu líder — dar-lhe tratamento especial, com o argumento de que se for condenado o senhor se vitimizará. Mas isso significaria o mesmo que dizer que a Lei e a Constituição existem, mas não se devem aplicar por conveniência política, o que daria aos Coxi menos proteção jurídica do que aquela que todos os cidadãos merecem.

Felizmente, não foi este o caminho seguido. A juíza que julgou o caso deu como provada a violação dos direitos de personalidade dos Coxi e condenou o político de extrema-direita e o seu partido a publicar pedidos de desculpas e retractações públicas nos mesmos canais onde as declarações ofensivas foram produzidas. Se não o fizerem no prazo de trinta dias, o partido e o político pagarão cada um setecentos e cinquenta euros de multa por cada dia de atraso. Se repetirem as declarações ofensivas, pagarão cinco mil euros por cada vez que o fizerem.

E assim, graças aos Coxi, o nosso ambiente fica um pouco mais saudável e a nossa política menos indigna. Caros Aurora, Fernando, Higina, Hortencio, James, Julieta e Vanusa Coxi, queiram por favor aceitar deste vosso concidadão o meu muito obrigado.»

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1 comments:

São disse...

Excelente texto


Ainda bem que neste caso toda a gente se portou dignamente, exceptuando claro o antigo seminarista e o grupo de criaturas que o segue.

As minhas saudações democráticas.