«Grande parte das análises a esta crise já estavam feitas antes da própria crise. Só esperavam o momento certo para desabrochar. Por isso, poucos ligaram a uma coincidência extraordinária: António Costa e Rui Rio, atuais líderes do PS e do PSD, não afastam a possibilidade de viabilizar um governo do opositor em circunstâncias semelhantes a esta. Rio di-lo expressamente, Costa insinua-o de forma quase explícita. Ou, pelo menos, ao contrário de Costa em 2020 e Rangel agora, não defendem que isso está interdito aos seus partidos.
A narrativa da inevitabilidade da crise, pondo toda a responsabilidade por ela em dois partidos mais pequenos que desde 2019 não têm qualquer compromisso com o Partido Socialista (por escolha do próprio António Costa), foi alimentada pelo primeiro-ministro e pelo Presidente da República. E fez um caminho tão sólido que ninguém se perguntou: se em iguais circunstâncias os atuais líderes dos dois principais partidos estão disponíveis para impedir um impasse, porque não o fizeram agora? O que de tão importante os impedia de nos levar a umas eleições que ambos consideram nocivas para o país?
A única diferença parece ser tão fútil como esta: António Costa tinha dito, em 2020, que não podia governar com o apoio do PSD. Ninguém o exigiu, o PSD não se pôs de fora, o BE e o PCP não tinham qualquer acordo com o PS que o impedisse. Costa disse-o porque quis dizê-lo. Porque, para fazer o cerco aos dois partidos à sua esquerda, lhe interessava dizê-lo. O PSD agradeceu, claro. Tirou todo o peso de cima dele. A partir de 2022 já pode? Porquê? Costa disse que não tinha mandato para tal. O PSD até podia não ter mandato para apoiar o PS. No limite, e com esforço, o BE e o PCP podiam não ter mandato para deixar de apoiar o PS. Mas esses eram mandatos desses partidos, não do PS. Costa não está ou deixa de estar mandatado para determinar o apoio de terceiros.
Não havendo acordos formais à esquerda (acabaram em 2019), o que Costa nos diz é que o seu mandato era ser apoiado pelo BE e pelo PCP, e que não tinha sido mandatado para ver o seu Orçamento viabilizado pelo PSD. Respeitar o mandato recebido dos eleitores correspondia, para Costa, a impor que os outros o continuassem a apoiar, não era ele próprio assumir compromissos com esses partidos. Ou seja, o seu mandato correspondia a deveres dos outros, não a seus. Imagino que essa foi a conveniente conclusão que tirou do reforço do resultado do PS, em 2019.
Além de absurdo, o argumento é falso. Se a questão era Costa estar mandatado para repetir a “geringonça”, violou esse mandato quando recusou um acordo de legislatura, porque esse foi um elemento central dos quatro anos anteriores. O mandato da “geringonça” nunca foi, nem nesses quatro anos, viabilizar orçamentos. Foi um conjunto de compromissos comuns. E se o mandato o impedia de negociar com o PSD (e obviamente não impedia), também o violou várias vezes nesta legislatura. Até para travar propostas do BE e do PCP.
O que fica claro é que António Costa e Rui Rio tinham, neste momento, todas as condições para impedir uma crise, já que se comprometem a, com as mesmíssimas condições e lideranças, impedir um impasse destes depois de 30 de janeiro. Se há solução para estas circunstâncias com os mesmos protagonistas e eles até o dizem, porque não foi tentada, pelo menos negociada, para impedir esta crise? Só pode haver uma resposta: a crise e as eleições agora interessavam a alguém. Basta olhar para as sondagens para perceber a quem seguramente não interessavam e a quem podiam interessar. Se seguirem esse rasto, a propaganda fica mais difícil de fazer. Costa e Rio explicam quando falam de cenários futuros que a crise presente tinha solução.
Se era evitável e aconteceu, é porque é útil a alguém. E não é difícil perceber a quem. Talvez Rio tivesse pressa para não ser apeado. Talvez Costa tivesse pressa para secar a sua esquerda e tentar a maioria absoluta. Isto já são conjeturas. Que a solução existia, é um facto que os dois não negam quando nos falam do futuro.»
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