«O CDS já morreu. E nunca resulta manter artificialmente vivo um corpo político que se esgotou. A aliança com o PSD só faz sentido se for para garantir a absorção do corpo morto e, com ele, os seus quadros e dirigentes. Tudo o resto soará a falso. E, nesta sua nova versão, se o ridículo matasse o CDS teria de ressuscitar para morrer de novo.
Depois de Olivença, a formiga que quer competir com o gigante da extrema-direita inventou uma nova polémica: os boletins de saúde infantil e juvenil iam deixar de ser cor-de-rosa e azuis para ter uma cor única, o amarelo. Apesar da cor única ser o padrão dos documentos do Estado, o deputado João Almeida viu aqui mais ofensiva woke e lançou uma campanha com o sugestivo hashtag #naosomostodosamarelos. O mesmo Ministério da Saúde que demorou mais de vinte dias a reagir a uma greve no INEM fez reverter, em apenas dois, a medida.
Acho que não preciso de explicar que é um desperdício de esforço e meios distinguir boletins de saúde por género, como seria com o passaporte ou o cartão de cidadão. Que é quem faz questão de ter esta distinção que se agarra a temas identitários inúteis, a debates fúteis, ao fetichismo político.
Se repararmos com atenção, grande parte das vezes que questões identitárias ou simbólicas ficam no centro do debate político é porque a direita, os supostos inimigos do woke, as colocam na agenda. Se a guerra não se faz em torno de cada palavra, faz-se na distinção cromática dos géneros, mesmo quando é dispensável. Basta recordar que Luís Montenegro teve como primeira medida a mudança do logotipo do governo com argumentos que, nos meses seguintes, ignorou em vários rebrandings institucionais. A direita conservadora precisa, desesperadamente, do fantasma woke.
Por causa de um protesto de um deputado, o Ministério da Saúde deu ordens à Direção Geral de Saúde para recuar numa medida meramente administrativa. Ninguém reagiu com mais do que umas gargalhadas, perante o ridículo.
Poucos dias depois, a marca de preservativos Control fez mais um dos seus anúncios provocadores. Com a imagem de uma castanha, lia-se: “O pior é quando a descascas e vês que tem uma minhoca”. Devo dizer que, quando vi o anúncio, julguei que era uma piada sobre as dimensões da genitália, o que me pareceu pouco inteligente para quem tem de vender proteção a todo o tipo de clientela. Depois percebi que a leitura foi outra, sobretudo por causa de se ter escolhido uma castanha e escrito “a descascas”. Os defensores da causa trans sentiram-se especialmente incomodados com “o pior”.
Não vou perder tempo com o conteúdo do anúncio. Defendo o direito a fazer aquela piada assim como defendo o direito de pessoas manifestarem a sua indignação, ao ponto de lançarem campanhas contra a marca. E esta, sim, é uma batalha minha: combater esta estranha moda de querer liberdade de expressão, mas nunca liberdade de reação, desde que seja por via do legítimo exercício da liberdade de expressão. Quando fazemos uma piada não decidimos como é que os outros reagem a ela. Podem rir-se, podem ficar indiferentes, podem ofender-se. E podem manifestar qualquer uma destas reações de forma pacífica, legal e livre. Liberdade de expressão não é dever de passividade dos outros perante o exercício dessa liberdade.
As empresas que contratam agências de publicidade não procuram entreter ou cultivar o público. Usam o humor para vender produtos. A polémica até lhes pode interessar. Determinado tipo de polémicas pode ser contraproducente. As empresas não têm qualquer problema em recuar numa piada se essa piada lhes tirar clientes porque os valores que estão em causa são mesmo os do mercado. Até lhes pode interessar a polémica e depois o recuo. É publicidade. Ponto.
Isto não acontece, infelizmente, só na publicidade. Como escrevi há uns meses, “o mercado é o maior censor”. No mercado livreiro, por exemplo. Maior do que o Estado. Com isso, vivo pior. É fundamental que haja áreas da nossa vida desmercantilizadas ou que, estando no mercado, não se submetam à sua ditadura: o jornalismo, a arte, a educação, a saúde, a habitação e por aí adiante. A publicidade dificilmente seria uma dessas áreas.
Perante a polémica, a Control achou que o humor lhe custava clientes e recuou e pediu desculpas. O recuo teve exatamente o mesmo objetivo da piada: ganhar ou manter clientes. Não têm razão? Precisava de conhecer os estudos de mercado para o saber. Para quem quer vender um produto, a sensibilidade dos clientes é central. Assim não deve ser na liberdade artística. E só um publicitário tonto julga que, por ser criativo, é artista.
Curiosamente, e ao contrário do que aconteceu com uma ordem dada pelo Ministério da Saúde, em nosso nome, à DGS, a ordem dada pela Control, em nome dos acionistas da empresa (penso que o atual proprietário é a LifeStyles Europe, que comprou a Tecnilatex), levou a uma enorme indignação contra a “censura” woke. Um caso, que envolve o Estado, não causou incómodo. Outro, que envolve uma marca, mobilizou muita gente, a começar pelo deputado da Iniciativa Liberal Mário Amorim Lopes, que quis explicar a uma empresa privada o que deve fazer quando há más reações a um anúncio. Achará, talvez com razão, que a empresa se engana na avaliação de mercado. Como liberal, deixará que seja a empresa a fazê-la. Ou oferece, claro, os seus préstimos de consultadoria.
Não estou indignado com a Control. Estou-me nas tintas, para dizer a verdade. Assim como estou nas tintas para cor dos boletins de saúde. Apenas quero recordar que a liberdade de humor é tão livre como a liberdade de indignação. Essa indignação só parece cancelamento quando são os outros a indignarem-se.»
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