25.8.19

Matar as greves sem mudar a lei?



«Em Portugal (mas não só aqui), a Ryanair não cumpre a lei. Não é de agora. Já no ano passado houve uma greve com a reivindicação elementar e singela que agora se repete: a Ryanair tem de cumprir a lei portuguesa. Depois da greve, em outubro passado, a Assembleia da República aprovou uma resolução proposta pelo Bloco para que o Governo interviesse nesse sentido – garantir que a lei portuguesa se cumpre, promover um contrato coletivo, estabelecer uma base salarial, fiscalizar as condições de trabalho. Em novembro de 2018, um protocolo assinado entre a empresa e o sindicato assumia que esse compromisso seria cumprido em fevereiro deste ano. Até agora, nada. O que se esperaria das autoridades? Que obrigassem a empresa a cumprir a lei. O que fez o Governo? Nada que se visse. A não ser, esta semana, proteger a empresa na manutenção da selvajaria laboral, ao esvaziar o impacto da greve por via da convocação de serviços mínimos numa empresa privada que não desempenha necessidades sociais impreteríveis.

Na verdade, estamos a assistir, com esta luta na Ryanair, a mais um episódio de um processo em curso com consequências importantíssimas para o mundo do trabalho: o redesenho, socialmente regressivo e politicamente autoritário, da lei da greve por parte do Governo. Esta reconfiguração escapa à alteração da lei escrita para aprofundar, sem debate nem validação democrática, a mudança efetiva da lei na prática. Fá-lo por via da banalização da definição de “serviços mínimos” maximalistas e do recurso à requisição civil. Fá-lo pelo esvaziamento dos efeitos económicos da greve através da completa subordinação do seu exercício aos supostos “imperativos económicos”, nomeadamente no setor do turismo. Fá-lo pelo empenhamento governamental no espaço público com vista a estabelecer como evidentes ideias disparatadas como a de que “durante uma greve não se negoceia” ou que deve poder fazer-se “requisições civis preventivas” antes mesmo de se saber se os serviços mínimos são ou não cumpridos. Fá-lo mobilizando o aparelho coercivo do Estado a favor das entidades patronais – o mesmo aparelho que não é mobilizado, por exemplo, para garantir a efetividade da legislação laboral que a Autoridade para as Condições do Trabalho deveria garantir. Este redesenho da greve, que foi além do que a Direita conseguiu fazer no passado, acontece depois de uma legislatura cujo final ficou marcado pela aliança entre o PS e a Direita para manter no Código de Trabalho o desequilíbrio nele inscrito durante o período austeritário, acrescentando-lhe medidas precarizadoras de constitucionalidade muitíssimo duvidosa (como o alargamento do período experimental). Não vale a pena fingir que não vemos.

O segredo do negócio da Ryanair – para voltar ao caso concreto – há muito que é conhecido. Não passa por nenhuma paixão pela democratização da mobilidade dos cidadãos. Os milhões de lucros da companhia aérea “low-cost” explicam-se por uma estratégia agressiva para reduzir ao máximo os custos da empresa e externalizar até ao limite os riscos para os seus trabalhadores (pelo degradação radical das condições de trabalho e pelo esmagamento dos sindicatos), para o Estado (contornando normas laborais, padrões ambientais e de segurança e chantageando os poderes públicos para obter apoios sob a forma de “incentivos ao turismo”) e para os clientes (pondo-os a realizar tarefas que seriam responsabilidade da companhia, como o transporte de bagagem, cobrando tudo o que for possível por fora, tendo Michael O’Leary sugerido, por exemplo, que os passageiros gordos passassem a pagar mais bilhete em função do peso, que se pagasse à parte a utilização das casas-de-banho do avião, ou que os pilotos simulassem maior turbulência durante os voos para a companhia vender mais bebidas a bordo).

Do ponto de vista laboral, a Ryanair é repugnante. Não há salário-base (são os chamados “ordenados de base zero” de que a empresa se orgulha), os horários não estão previamente fixados e os trabalhadores só recebem a partir do momento em que o avião levanta vôo, deixando de de receber quando ele aterra (ou seja, solicita-se uma permanente disponibilidade não paga, as escalas sabem-se ao dia, não se pagam horas extra e multiplica-se o tempo trabalho não remunerado). Quem trabalha na Ryanair não têm direito a água potável (tem de comprar as suas garrafas de água para usar no período de trabalho, tal como a comida), não goza os 22 dias de férias que a legislação portuguesa prevê como obrigatórios e irrenunciáveis, não vê os direitos de parentalidade respeitados. Para maximizar lucros, a empresa transforma ainda os e as assistentes de bordo numa espécie de promotores de produtos e agentes de vendas (com a famosa história de a sua avaliação depender do número de raspadinhas que vendem durante a viagem). O abuso é a regra e a lei portuguesa é olimpicamente ignorada.

É por isto que os trabalhadores da Ryanair estão em greve. Têm toda a razão em fazê-lo. Ao agir tendo como preocupação fundamental dar conforto à empresa e impedir que a greve se faça sentir, o Governo revela não apenas a sua escandalosa parcialidade, mas abre um precedente grave para todas as empresas que achem que, em Portugal, a lei não é para cumprir. Sim, as greves perturbam o nosso quotidiano. Mas foram greves que nos trouxeram o fim de semana e as férias pagas, os contratos coletivos e a proteção no desemprego, a assistência pública na saúde e até a democracia política. Estamos mesmo dispostos a deixar que deitem ao lixo esse direito?»

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