«Isto da greve dos motoristas, que não é de todos os motoristas, nem sequer de todos os motoristas de substâncias perigosas, leva a comentarismo de vária ordem do qual não quero ficar de parte, até porque estamos no verão, um verão perfeito sem calor e com chuva, o que muito irrita toda a gente que gosta é de calor, e também, suspeito, deve estar a dar gozo aos negacionistas do aquecimento global, mas que para a semana terão de derreter as suas palavras com o calorão que vai fazer, pelo menos é o que diz o tempo.
Uma das vantagens desta greve, e perdoem-me se me estou a repetir, ninguém manda ler estas coisas, é mostrar o que é escassez. A abundância morna que se chama Portugal é sacudida pela possibilidade de algo faltar. E não é algo qualquer, é o algo gasolina para o carro. Depósito cheio, o carro, o acesso aos bens materiais que chegou há tão pouco. Sim, estradas fechadas, não poder ir trabalhar, tudo isso é muito relevante, claro. Mas há o facto de ser o carro. E o carro mexe com a psique das pessoas.
Mas relembrar da escassez é bom, é importante. Saber que as coisas podem faltar, sobretudo aquelas de que mais se precisa, mais valiosas. Lembrar que um dia faltou muito, um dia até faltou tudo. Tudo e mais alguma coisa.
Além da escassez e do seu papel em mostrar as fragilidades da fartura, a escassez também mostrou a abundância da estupidez, dos medos infundados, do exagero, do açambarcamento como reação humana, demasiado humana, de querer ficar com mais à custa do menos dos outros, de querer ficar com tudo à custa do nada dos outros. A abundância acumulada perante o desespero de quem chegou à bomba depois de o último abastecer, foi por pouco, pensa, bastava não ter deixado aquele carro meter-se à frente, lá atrás, bolas, se soubesse não tinha parado para a velhinha na passadeira. A culpa é dos turistas, vêm os uberes e os táxis e açambarcam tudo, e a culpa é dos imigrantes que nem querem vir para cá, porque se viessem trabalhavam por menos dinheiro e não havia greves nenhumas. A escassez lembra-nos da maldade à raiz da pele. Quando tudo está bem, está tudo bem.
E abundância é sempre melhor do que escassez. E o que esta crise nos tira em gasosa, dá-nos em sindicatos. E como liberal, alguém que acha que haver concorrência, de empresas, de pessoas, de animais de estimação, do que for, não pode deixar de estar deliciado com o empreendedorismo sindical em que Portugal se está a transformar, uma Union Summit. Talvez o PS e as outras forças democráticas quando lutaram nos dias lá atrás contra a unidade sindical nunca imaginassem que hoje teriam de lidar com sindicatos que (ia escrever, sindicatos em que não mandam e que fazem precisamente o que é suposto os sindicatos fazerem, mas arrependi-me a meio para não ofender ninguém) encaram a luta do trabalhador como uma coisa de curto prazo. Sem tempo a perder. Que açambarcam argumentos e nos relembram da humana bondade na fartura e maldade na escassez.»
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