22.9.22

Sereias e lamuriantes

 


«Esta semana, uma aluna minha confessou que o seu sonho era ser condutora de veículos pesados, mas como nunca tinha visto uma mulher nessa atividade pretende então dirigir-se para um diploma que lhe permita ter um emprego na área da logística e contabilidade. “Professora, vou ficar sentada no escritório”, disse-me ela pouco entusiasmada. Tanto eu como as colegas que ouviram a conversa dissemos-lhe que seguramente havia mulheres nessa atividade, mesmo sendo poucas, e que caso assim não fosse ela até poderia ser a primeira e ser ela a servir de exemplo. A cara dela iluminou-se. Eis uma jovem de 17 anos que deve decidir do seu futuro e se autocensura por falta de modelos. Ela não é caso único e confirma de forma inequívoca que a representação importa.

Nas últimas semanas, assistimos a mais um patético número de lamentação de quem até é capaz de dizer que não vê cores, mas que não suporta que uma personagem ficcional meio-peixe meio-humana possa ser negra. A grotesca lamúria contrastou com a genuína surpresa e alegria de muitas meninas negras ao verem que uma personagem central da Disney se parece com elas. Estas meninas não têm como projeto profissional de sonho serem sereias como a minha aluna sonha conduzir camiões, mas emocionam-se com o facto de, enfim, terem acesso a personagens centrais com as quais se identificam, que não sejam a amiga negra rabugenta ou o amigo negro cómico.

A identificação é um processo complexo e a cor da pele ou a textura dos cabelos não são as únicas características pertinentes, mas também contam e muito num universo infantil (e adulto) constituído na sua maioria por figuras estereotipadas e onde a diversidade positiva ainda não é uma evidência, apesar dos progressos. Sobretudo, no que diz respeito às crianças e à problemática do racismo interiorizado, face aos resultados desastrosos do “teste da boneca” da psicóloga Mamie P. Clark e do psicólogo Kenneth B. Clark patentes no estudo Racial identification and preference among negro children. Neste teste de 1947 as crianças negras têm de escolher entre uma boneca branca e uma boneca negra, em tudo o resto idênticas, e na sua esmagadora maioria elas preferem a boneca branca, e apesar de se dizerem mais parecidas com a boneca negra afirmam que esta última é “mais feia” e “mais malvada”. Este teste foi replicado várias vezes em várias partes do mundo até hoje com os mesmos resultados. A representatividade é indispensável para a autoestima das crianças e pode ter repercussões para toda a vida em vários dos seus domínios.

Ainda nas últimas semanas, a agremiação dos lamuriantes também não gostou de saber que haveria um casal de mulheres lésbicas, mães de uma personagem no desenho animado A Porquinha Peppa. “Família é um pai macho e uma mãe fêmea”, bramam chorosos. O problema não é tanto a questão da diversidade em si, mas a possibilidade de uma diversidade positiva. Para os lamuriantes as obras artísticas podem representar mulheres, pessoas negras ou pessoas LGBT+ desde que estas apareçam em lugares fossilizados. O que lhes causa no mínimo comichão é ver estas personagens geralmente subalternas, sem profundidade ou poder, passarem a personagens centrais. Negras e negros escravos, delinquentes, submissos ou perigosos, aceita-se, mas super-heroínas ou heróis, rainhas ou reis, ou qualquer outro tipo de representação de poder já não passa. Os lamuriantes sabem, mesmo se de forma não consciente, que a representatividade importa, senão não se incomodariam tanto com estas questões e não entrariam numa espécie de pânico de grande substituição.

Sabem ou deveriam saber, por exemplo, para que serve a representação de uma figura como Jesus em bebé ou adulto loiro de olhos azuis, e porque não se embaraçam com argumentos de plausabilidade histórica, social ou cultural como o fazem no caso de personagens de ficção negras. Como explica a socióloga e militante antirracista francesa Colette Guillaumin em A ideologia racista (1972) o problema do racismo carrega consigo um potencial afetivo muito elevado, obscurece a reflexão, “as questões colocadas por este ato social que é o racismo são profundamente marcadas por motivações inconscientes da própria conduta racista”.



Independentemente das razões comerciais e/ou progressistas de quem produz hoje obras mais inclusivas, a verdade é que a representação de uma diversidade positiva é necessária. Estas iniciativas devem ser encorajadas e desenvolvidas de forma ainda mais exigente. E os lamuriantes deveriam ler as doutas palavras do sociólogo e historiador inglês Paul Gilroy em Melancolia Pós-colonial (2004) que os aconselha a aceitar um “destino crioulo inevitável” porque a “presença incomodativa” das pessoas negras, e eu acrescento da diversidade em geral é irreversível. Não sabemos ainda a história desta pequena sereia que só estreará em maio do próximo ano, se respeitará o desenho animado, a história original de Hans Christian Andersen ou ainda uma outra versão, mas se for para servir de novo às crianças modelos hétero-normativos de submissão da mulher aos desejos masculinos, a iniciativa deixará ainda muito a desejar.

A representação importa e é uma de entre outras vias, mais ou menos urgentes, mais ou menos necessárias para a vida em conjunto. O progresso em matéria de direitos humanos é real, mas foi sempre feito à custa de uma luta contínua em várias frentes. Estamos numa fase de retrocesso em várias partes do mundo, com fantasmas do passado rejuvenescidos para os quais os direitos humanos e até uma sereia negra são uma ameaça. Os lamuriantes estão a ganhar terreno no campo das ideias e o poder efetivo em vários cantos do mundo. Conseguem fazer acreditar que, hoje, quem luta pelos direitos humanos é extremista, radical, terrorista. Ser feminista, antirracista, antifascista, pro-LGBT+, pro-refugiados, preocupar-se com os mais vulneráveis, os mais pobres, passou a ser uma radicalidade, um perigo.»

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