21.9.22

O velório do planeta não nos entretém

 


«A não ser que viva numa bolha climatizada, já ninguém precisa que lhe expliquem que o dantesco futuro que nos anunciavam chegou. Se a memória mediática não fosse a de um peixe, políticos e comentadores que andaram a negar a ciência teriam a sua credibilidade enterrada. Assim não será, porque desde que a irresponsabilidade seja viral, o seu negócio está garantido.

Como se previa, os maiores poluidores per capita, que vivem no conforto provisório que os protege, serão os últimos a sentir as consequências da ausência de vontade política para enfrentar o maior combate da história da humanidade. Primeiro serão os pobres dos países pobres, depois os pobres dos países ricos e só no fim, tarde demais, os ricos, que não têm país.

António Guterres propôs, ontem, que os países mais ricos taxem mais os lucros extraordinários e “imorais” das empresas energéticas (e da banca) e que os utilizem para “apoiarem as pessoas mais vulneráveis nestes tempos difíceis”, incluindo os países mais pobres. Lembrou que os lucros combinados das maiores empresas de energia a nível global aproximaram-se dos cem mil milhões de dólares no primeiro trimestre deste ano.

As décadas que tem a proposta da Taxa Tobin, sobre os fluxos financeiros, parecem ser séculos. Quem nos dera que os governos fossem sequer capazes de cobrar impostos a estas empresas para os canalizar para os seus próprios pobres. António Costa lá veio dizer que acha muito bem os impostos sobre lucros inesperados. Até vai votar a favor da proposta da Comissão Europeia. Mas seremos dos últimos a aplicá-la, porque a nossa prioridade é cortar em salários da Função Pública, pensões futuras e IRC a todas as empresas, sem qualquer critério.

O mesmo António Guterres bem tentou que o mundo, olhando para ele, olhasse para a tragédia imensa que se abateu sobre o Paquistão. Mais de 1500 mortos, mais de um milhão de casas danificadas ou destruídas, mais de 33 milhões de paquistaneses afetados, centenas de milhões de animais mortos. Só na província do Baluchistão estimam-se prejuízos que se aproximam dos mil milhões de dólares. Uma parte da província de Sindh ficou transformada num lago com cem quilómetros de largura, isolada do resto do território.

Na visita ao Paquistão, Guterres explicou que a área inundada era três vezes maior que a de Portugal. E acrescentou: “Tenho visto muitos desastres humanitários em todo o mundo, mas nunca vi uma carnificina climática a esta escala. Simplesmente não tenho palavras para descrever o que vi hoje.” Isto começou há quase um mês, e num terço desse mês as televisões dedicaram-se a uma única morte que, ainda por cima, não tem qualquer consequência prática ou política. Entretanto, as águas começaram a regredir. Vai durar entre dois a seis meses e deixará as regiões inundadas infestadas de malária, dengue, diarreia e problemas de pele. A visita de Guterres foi um dia depois da morte de Isabel II. Teve azar. O mundo não quis saber.

Um jornalista que respeito partilhou, imagino que como mero registo pessoal, imagens suas na Ucrânia e em Londres, durante as cerimónias fúnebres da Rainha Isabel II. A legenda era: “Estas duas imagens têm apenas cinco meses de diferença. Um ano absolutamente louco."

A morte de uma senhora de 96 anos não se enquadra propriamente num ano louco. E a guerra, infelizmente, também não. Não passou um ano sem uma. E bem mortíferas, por sinal. Temos é andado distraídos. Tanto que, enquanto um território três vezes o português sentia, debaixo de água, os efeitos das alterações climáticas, o mundo ficou de olhos postos numa fila de um velório. Sim, o mundo está louco. Mas não foi este ano. E pagaremos bem cara a loucura.»

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