18.9.22

A sociedade da avaliação contínua

 


«Na escola é um método de avaliação em que o que conta é o desempenho integral dos alunos e não apenas os exames. Mas a avaliação contínua há muito que saltou dos bancos estudantis. Hoje parece que nada escapa ao cálculo, à medição ou quantificação. Pessoas, actividades ou instituições vivem obcecadas com pontuações, indicadores e rankings.

Uma cara verde sorridente. Uma cara amarela que nem sim nem não. Uma cara vermelha furiosa. Em lojas, hotéis, restaurantes ou instituições surgem ecrãs que nos permitem clicar num destes ícones para expressar o nosso grau de satisfação com os empregados. O mesmo sucede, depois de uma chamada para um operador telefónico, uma visita do canalizador ou uma viagem de Uber, classificando-se o serviço de 0 a 5 estrelas, tal como se qualifica bares, hospedagens ou pessoas em aplicações de encontros.

Nas redes sociais, milhares de olhos escrutinam os nossos comentários. No Twitter grita-se. No TikTok dança-se. No Facebook hostiliza-se. E no Instagram provoca-se inveja. Enquanto isso, na TV os júris de programas incitam os concorrentes a melhorar a marca pessoal e a vender melhor o seu produto. Já os jornais enchem-se de artigos sobre a melhor forma de sairmos da zona de conforto, de pensarmos fora da caixa, de superar os limites. Há muitos elementos no nosso quotidiano que parecem conspirar para nos fazer sentir sempre avaliados, julgados, vigiados e comparados.

Nas relações de mercado a competição e a ambição são muito valorizadas. Mas essa lógica concorrencial não se limita aos negócios ou transacções comerciais. Tornou-se uma característica da vida quotidiana. Vivemos num estado permanente de rivalidade, não apenas em termos de riqueza, estatuto e poder. A roupa, a aparência, os clubes desportivos a que pertencemos, os consumos culturais que fazemos, o trabalho, a habitação, a família, o número de seguidores nas redes sociais ou a percentagem de gordura corporal que muitas vezes está acima do que é recomentado no artigo da revista, também servem para os mais diversos cálculos. Nesta era hiperconectada proliferam formas de medir o nosso desempenho. A classificação constante dos outros determina o estatuto de uma pessoa em tempo real.

Dessa maneira é produzida uma nova normalidade social que se caracteriza pela indiferença para com aqueles que não são considerados úteis. Nas sociedades dominadas pela ideologia hiper-individualista, por um lado, temos aqueles que são enaltecidos como clientes, e muitos outros que são culpabilizados pelo aparente insucesso na corrida implacável pela competitividade. Quanto mais somos influenciados por esta ideologia, mais nos enredamos num ciclo destrutivo, que gera angústia, mina a auto-estima e produz ressentimento.

Os números são relevantes para decifrar a realidade. O problema é o sentido acrítico com que lidamos com eles. Às vezes mais parecem mitos que se explicam por si próprios. O filósofo espanhol Daniel Inneraty dizia que, quando não entendemos uma sociedade, passamos o tempo a medi-la e a quantificá-la. O drama é quando fazemos cálculos a partir de erros de base. Na vida colectiva passamos o tempo a guiar-nos pela ideia de crescimento — sem articular quantidade com qualidade, equidade, sustentabilidade, boa governança, protecção ambiental ou bem comum. E individualmente é a desigualdade gerada pelo sistema económico que atinge muitos no amor-próprio e no medo de serem julgados insignificantes, nesta sociedade da avaliação contínua.»

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