24.1.21

A democracia não é um dado adquirido



 

«Tendo nascido nos anos 80, a nossa formação política iniciou-se quase ao mesmo tempo em que aprendemos a falar. A democracia tinha poucos anos e aquilo que lhe faltava em maturidade sobrava em entusiasmo. Aprendemos que um debate se queria longo e aceso, rico em ideologia e ideais, que as campanhas eram feitas de multidões, algazarra e episódios, que o voto era uma arma e que se votava em urnas e nas ruas, se preciso fosse. Aprendemos que a democracia se conquistou no 25 de Abril, mas ninguém nos disse que tínhamos de trabalhar para a manter. 

A democracia deixou para trás um passado de iliteracia, mortalidade infantil, desemprego, miséria e emigração em massa, repressão política e guerra, e muitas outras agruras. Para a maioria das pessoas da geração dos nossos pais, que conheceu essa realidade, pensar numa alternativa à democracia era um anátema; para nós, para quem o passado ainda estava bem visível nas palavras dos nossos pais e avós, era uma impossibilidade. 

Talvez por isso nunca considerámos a possibilidade de a democracia não ser um dado adquirido e de nos caber, afinal, lutar por mantê-la. Encerrados nas nossas certezas, demorámos a perceber que a descredibilização de um representante eleito não fere apenas a imagem do respectivo partido político ou instituição, mas também a confiança de todos no sistema democrático. Ou que a incapacidade, por qualquer via ideológica, de corrigir desigualdades e assimetrias regionais, e de desenvolver transversalmente o país, abriria a porta a que, tarde ou cedo, alguém questionasse a validade de um sistema sobre o qual se colocam tão elevadas expectativas. E não reconhecemos que as crescentes taxas de abstenção não se limitam a piorar a qualidade da nossa democracia, sendo antes sintoma e causa da sua perda de sustentabilidade. 

Lá fora, candidatos populistas, apostados em “dar voz aos que não têm voz”, desafiam ou tomam o poder. Nos EUA, líderes do mundo livre e democrático, massas ululantes, tomaram de assalto o Congresso, afirmando fazê-lo em nome da democracia e às ordens do Presidente, para impugnar o resultado das eleições que o derrubou. Em Portugal, hoje, em plena campanha presidencial, os candidatos não discutem ideologia, ideais ou sequer visões institucionais. Discutem-se uns aos outros ou fingem que nem lá estão. Entretanto, há um candidato que parece apostado em seguir as passadas dos que, no século XX, mantiveram Portugal no miasma que só a democracia veio dissipar e deixaram a Europa afundada em duas guerras com milhões e milhões de mortos. 

Acabou o “estado de graça” da democracia. Não temos já motivos para acreditar que esta sobreviverá, nesta ou noutra forma reconhecível, independentemente do nosso desinteresse e inacção, ou que resistirá eternamente à desilusão, ao cinismo e ao desespero do número crescente de pessoas que, a cada quatro anos, sentem que nada mudou. 

Muito há a fazer e nada do que se possa fazer produzirá o milagre de nos dar a democracia que queremos de um dia para o outro. Incrementar a militância política e restaurar a ligação dos partidos à comunidade, revitalizar o associativismo em todas as suas formas, fomentar a literacia política e cívica são apenas alguns dos passos que aqui, na base do nosso sistema político, estão ao nosso alcance enquanto cidadãos. Não são ideias originais, mas estiveram na origem do nosso sistema político e é nelas que temos que apostar para lutar pela democracia.» 

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