27.1.21

Quando passar uma ambulância, não olhem para o lado

 


«Em casa, após mais uma urgência de 24 horas, é tempo para um café bem forte e, finalmente, para a leitura do PÚBLICO de ontem e o retomar do contacto com o que se passou fora do hospital. 

As notícias do agravamento dos números da pandemia em Portugal e a subida rápida do país ao topo da lista dos países com piores indicadores traz-me à memória uma das situações vividas ontem. Pelas quatro horas da tarde eu estava numa ambulância, transportando para o hospital uma doente em estado crítico, ligada a um ventilador. No interior da ambulância, por momentos desviei a atenção dos monitores, dos tubos e da doente e espreitei pela janela: estávamos na VCI, a via que circunda a cidade do Porto, e foi com espanto que constatei verificar-se um trânsito muito intenso. O fluxo de veículos era contínuo, nas três faixas de cada sentido, em tudo semelhante a um dia normal. Isto, em pleno confinamento, numa sexta-feira de tarde, com as escolas fechadas, com o país sob medidas muito semelhantes às de Março/Abril, o que observei nada tinha que ver com o que se observava então e o contraste chocou-me. No hospital desde o início da manhã, pensávamos que o fecho das escolas iria finalmente resultar em manter as pessoas em casa. Quem seriam e o que fariam todos os cidadãos que às quatro da tarde circulavam em tão grande número? Não estavam a sair dos empregos, não estavam a recolher os filhos nas escolas, alguns estariam em trabalho, mas todos? 

Enquanto tentava entender o que poderia justificar tanto trânsito e quem ocuparia aqueles veículos, não pude deixar de efectuar o exercício inverso de procurar imaginar que reacção provocaria aos ocupantes dos veículos a passagem de uma ambulância e o alerta das suas luzes e sirenes. Quantos se terão preocupado com o doente transportado na ambulância? Em quantos a passagem da ambulância terá proporcionado um momento de reflexão e de introspecção? 

A verdade é que são tantas as ambulâncias que receio que para muitos a sua passagem não suscite mais do que indiferença. A passagem da ambulância terá representado apenas uns milissegundos de desvio da atenção, não deixando marcas, nem suscitando reflexões. Se a ambulância transportasse alguma celebridade e ao final do dia pudessem reclamar ter assistido à passagem da ambulância que transportava “X”, então sim, o caso mereceria toda a atenção. Mas sendo apenas mais uma ambulância e o doente um simples número numa estatística anónima publicada no dia seguinte, nenhum efeito produziria este cruzamento fortuito com mais uma ambulância. Enquanto eu procurava entender o que se passaria na mente dos ocupantes de tantos veículos, senti que nas mentes de muitos deles a preocupação efectiva com o cenário no interior da ambulância seria reduzido. 

Mais tarde, no hospital, conversei com colegas sobre as possíveis causas para o que nos parece ser uma aparente ineficácia ou um efeito limitado do presente confinamento. Porque é que os portugueses não estão a ficar em casa e a abster-se dos contactos sociais que mantêm a propagação do vírus? 

Atrevo-me a especular que, ao contrário do início da pandemia, agora o alarme e o medo só ocorrem quando é a vida de um dos nossos que está em perigo. Numa fase em que um em 20 portugueses já contraíram o vírus e a maioria nada sofreu, e em que qualquer um conhece pessoalmente várias pessoas a quem o vírus não causou doença, atenuou-se muito o medo que em todos existia no início da pandemia. Este facto, associado a semanas de exposição aos discursos que repetiam que na segunda vaga havia sobretudo assintomáticos e que o SNS estava preparado e com boa capacidade de resposta, resultou num relaxamento das medidas de protecção. A completar as premissas para uma tempestade perfeita, veio o Natal e as atitudes optimistas que tanto agradaram quer aos decisores, quer à generalidade dos cidadãos, numa singular unanimidade entre a hierarquia do Estado, as diversas autoridades e a totalidade dos partidos políticos e, naturalmente, os cidadãos. Acreditou-se na existência de condições para uma abertura no Natal e naturalmente, por efeito do chamado espírito natalício, terá ocorrido um fenómeno muito próprio da nossa cultura em que o desejo se sobrepôs à realidade. 

A comparação entre a reacção dos nossos concidadãos ao avanço da pandemia em Março e em Janeiro sugere que o efeito determinante no seu comportamento possa ser a dimensão do medo. A meu ver, esta componente é no caso da presente pandemia reforçado por um elemento que constitui uma absoluta novidade: os familiares não acompanham os seus entes queridos ao longo dos seus internamentos hospitalares e não são, por isso, testemunhas do que é estar gravemente doente e sucumbir a esta doença. A fase avançada e grave ocorre com um absoluto distanciamento físico. Penso que é maior, por exemplo, o medo relativamente ao cancro, pois todos somos testemunhas de casos em que a progressão da doença provoca grandes incapacidades, as quais evoluem ao nosso lado, com uma evidência que nos choca. Com os nossos familiares internados em enfermarias covid quase não há contacto. As imagens das televisões são muito impessoais e o doente e a sua narrativa reduzem-se a números. Os casos que se tornam mediáticos são os dos sucessos terapêuticos que felizmente vão ocorrendo, mas que no fundo alimentam uma esperança que as estatísticas não iludem. 

Dois depoimentos na última semana no PÚBLICO, de Jorge Soares, presidente do Conselho Nacional de Ética, e de Carlos Antunes, investigador da FCUL, são muito importantes para a compreensão do elevado crescimento em Janeiro dos números da pandemia em Portugal. 

É urgente conseguir que os portugueses modifiquem a sua atitude e que entendam que está nas mãos de cada um o gesto mais importante para travar a progressão da doença. O que observei ontem na VCI sugere que muitos dos nossos concidadãos diariamente encontram motivos para legitimar o que a seu ver lhes parece uma inofensiva inconformidade. E como no dia-a-dia todos constatam que as suas acções e deslocações ocorrem num cenário em que a probabilidade de serem interpelados e questionados é mínima e a de serem penalizados é ainda menor, instituiu-se mais um cenário em que ambas as partes, autoridades e cidadãos, se refugiam na presunção de que irá prevalecer o respeito pelas determinações do confinamento e a adopção de um comportamento civicamente exemplar. Sim, porque após tantas iniciativas no domínio do que se pode classificar de “propaganda”, os portugueses convenceram-se de que desde o início da pandemia foram absolutamente exemplares, ostentando orgulhosamente o rótulo de ter participado no “milagre português”. 

Esta manhã, ao sair do hospital pelos pisos subterrâneos, vi passar dois cadáveres e não pude deixar de sentir um aperto no peito imaginando o rastro que a noite terá deixado em tantas enfermarias de tantos hospitais. A caminho de casa comprei o PÚBLICO e comovi-me ao olhar a sua primeira página onde, em grandes letras sobre fundo negro, se lê: “Luísa, Vítor, Pedro, Helena... vidas que perdemos para o coronavírus”. É justamente isso que os nossos concidadãos devem ter em conta: o ocupante da ambulância, a noite nas enfermarias cheias de doentes, a perda de tantas vidas e a identidade dessas pessoas. 

Há que ter em conta os milhares e milhares de crianças e jovens que vão ficar privados de anos de convívio com os seus avós. Nós, os cidadãos adultos, assoberbados com os problemas pessoais diários, temos que mudar o modo como assistimos à progressão da pandemia e uma das formas de o fazer é pensar no que teria representado para cada um de nós se os avós que nos morreram há muito tivessem morrido dez anos antes e mal os tivéssemos conhecido e beneficiado dos seus afectos, das suas histórias, do tempo que nos puderam dispensar e dos valores que através deles adquirimos ou dos valiosos ensinamentos que nos prestaram. Não é só a aprendizagem nas escolas que se está a perder, é também essa rica aprendizagem junto dos velhos. E cada um dos cidadãos em idade e situação em que o vírus não representa uma ameaça deve assumir consciência de que pode ser o elo determinante na perda da vida de velhinhos encantadores, que nunca conheceram, mas que podem estar hoje a deixar de respirar e viver. 

Felizmente, a doente que a nossa ambulância transportava está a melhorar, o que permite concluir este depoimento sem adicionar mais uma narrativa trágica. E, sim, posso assegurar que o pessoal das ambulâncias, os auxiliares de acção médica, os enfermeiros, os técnicos, os médicos, os administrativos dos diferentes prestadores de cuidados de saúde, não viramos costas. E o que pedimos é simples: quando passar a ambulância ou a estatística na TV, não olhem para o lado; olhem em frente e vejam o que podem fazer do vosso lado. Pode parecer pouco, mas se todos assumirmos que as acções de cada um contam, o efeito será mais eficaz do que qualquer outra medida.» 

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