«“No futuro, todo o trabalho será precário, até que ninguém do planeta saiba se de facto está ainda a trabalhar.”
Podia ter sido o Dilbert
Falar da precariedade na ciência, em particular, é sempre muito confuso. As subtilezas contratuais são muitas e as tipologias de vínculo muitas são. Tentando esclarecer um pouco o leitor leigo nesta precariedade, e não os investigadores que já a sabem toda, recorrerei a uma ilustração.
Imagine-se num supermercado com quatro caixas e, a bem da ilustração, imagine-o público. O caixa 1 é funcionário do quadro do supermercado, o caixa 2 é contratado a termo certo do supermercado, o caixa 3 é também contratado a termo certo, mas pela Fundação Supermercado, e o caixa 4 é bolseiro da Fundação de Apoio aos Supermercados. O caixa 1 ganha mais. O caixa 2 e o caixa 3 ganham o mesmo. O caixa 4 ganha menos e nem tem direito à segurança social dos outros. Ao final de uns anos, o caixa 1 talvez suba de escalão, o caixa 2 reza para ter contrato igual ao caixa 1, o caixa 3 vai embora porque a Fundação Supermercado diz não ter quadro de caixas, nem nada a ver com o supermercado, e o caixa 4 reza pela oportunidade de ter um contrato, pois a probabilidade de o conseguir é só de 8%.
De vez em quando, há concursos da Fundação de Apoio aos Supermercados onde se podem ir buscar bolsas de caixa, pela qual muitos rezam também. Todos os caixas têm de dizer no crachá que trabalham no supermercado, independentemente de quem os contratou. O caixa 4 tem ainda de agradecer no crachá à Fundação de Apoio aos Supermercados. O caixa 1 e o caixa 2 votam nas eleições do supermercado. O caixa 3 não pode votar. O caixa 4, só pode às vezes. O “ministro dos Supermercados” diz a toda a gente que o caixa 2 e o caixa 3 têm um contrato tão bom como o caixa 1, que não têm contratos precários coisa nenhuma, ganham menos porque têm tarefas muito diferentes, e que o caixa 4 não pode ter contrato porque está em formação. Todos os produtos têm código de barras e todas as caixas calculam o troco.
O “Conselho dos Administradores dos Supermercados Portugueses” concorda com tudo, desde que não tenha de pagar ou contratar para os quadros, e de preferência que não tenha de dar direito de voto a mais ninguém. O ministro finge acreditar que vão todos para o quadro. Finge também que não é ele quem tem de pagar. Certo dia, houve um programa de regularização extraordinário dos vínculos precários. Os caixas 2, 3 e 4 concorreram porque trabalhavam há anos no supermercado e não percebiam porque não estavam no quadro como o caixa 1. Foram todos recusados, ou porque o “Administrador do Supermercado” disse que não eram necessários ou porque, apesar do que dizia o crachá, nem sequer trabalhavam para o supermercado. O ministro achou bem e o seu Governo também.
Está inscrito na Constituição da República Portuguesa que — abreviando muito — todos têm direito ao trabalho, que para trabalho igual salário igual, e que incumbe ao Estado promover políticas de pleno emprego e promover a formação dos trabalhadores. Contudo, entre muitos outros desmandos, e sem apelo nem agravo, a formação é agora argumento para manter bolsas e recusar contratos. A continuar assim, brevemente, todos os médicos serão bolseiros, durante os longos anos de internato e especialização, e se alguém ousar aprender alguma coisa enquanto trabalha, será logo despedido. Mas não esmoreça o leitor, pois os “caixas” são muitos e estão unidos e não deixarão que no futuro só haja contratos para quem já tudo tiver aprendido.»
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