14.9.24

Ser senhor da sua morte

 


«Não me interessa muito a discussão jurídica e técnica sobre a eutanásia, porque ela é um biombo para duas concepções sobre a vida e a morte, sobre a liberdade de cada um dispor do seu corpo e os limites do sofrimento e da dor que também cada um está disposto a ter, assim como o modo como defronta a decadência do seu corpo e cabeça. Repare-se que, nesta enumeração, o sujeito da decisão e da acção é sempre individual, e as únicas garantias na lei que contam são aquelas que asseguram o predomínio da vontade individual, com liberdade e consciência. Se há, por isso, uma decisão estritamente pessoal e íntima é aquela de pôr termo à vida através da eutanásia. Em última razão, esta é a liberdade mais fundamental, ser senhor do seu corpo face à vida e à morte, ser senhor da sua morte.

Qual o grau de interferência que o Estado pode e deve ter face a essa liberdade última? Nos programas dos principais partidos portugueses está uma resposta a esta questão, que remete para o modo, como, por exemplo, os deputados devem comportar-se face a legislação sobre a eutanásia, como aliás sobre o aborto. Aqui os partidos dividem-se, PCP, BE, PS olham para as pessoas essencialmente como cidadãos, como membros da polis, que são governados pelas regras da polis, decididas democraticamente, que implicam que qualquer decisão sobre esta matéria é de natureza cívica e não depende da consciência individual. O terreno da consciência, incluindo as convicções religiosas, deve ser submetido à decisão democrática de como se organiza a sociedade, e à definição dos direitos e obrigações dos seus cidadãos. Mesmo que se admita um terreno de liberdade de consciência ele é sempre a excepção e não a regra.

Compreende-se que assim seja quando se trata de costumes e práticas de carácter religioso que menorizam as mulheres, como é o caso da excisão feminina em certas comunidades islâmicas africanas, que existem aliás em Portugal. Aliás, o confronto cultural que atravessa as democracias europeias sobre como actuar face a práticas cujas vítimas são essencialmente as mulheres, seja através de sociabilidades proibidas, trajes, comportamentos de poder assentes na família, é revelador da dificuldade desta questão. Os direitos fundamentais, que são uma construção política, nem por isso devem ser relativizados, porque há aqui um adquirido civilizacional, com um fundamento humanista que devemos ter e defender.

Mas há uma outra concepção patente nos partidos que incluem uma visão personalista nos seus programas, o PSD e o CDS. Essa visão personalista, genética no caso do PSD, através da influência que tinha a doutrina cristã, em particular a doutrina social da Igreja, nos homens que fundaram o partido, a começar por Francisco Sá Carneiro, em que é que ela se traduz na prática? O personalismo de Emmanuel Mounier é fortemente inspirado numa interpretação filosófica da doutrina cristã e, como o nome indica, parte do princípio de que a “pessoa” não se reduz ao cidadão, mas inclui uma dimensão metapolítica, na qual se concentra determinado tipo de liberdades de consciência, como sejam as ideias sobre o mundo, concepções sobre a vida e a morte e convicções religiosas.

Sá Carneiro, que incluiu no programa do PPD a laicidade do partido – e é por isso que uma tentativa de importação do “Deus, Pátria e Família”, que se tentou fazer no tempo de Cavaco Silva, violava o programa do partido –, tirava uma outra consequência da ideia de que havia uma dimensão para além da política que não podia ser reduzida à cidadania. E essa consequência é que, em determinadas decisões, não se podia impor uma orientação do partido, se elas estiverem assentes na liberdade de consciência individual, como se verificava com o aborto e com a eutanásia. Ou seja, a solução em votações sobre essas matérias implicava necessariamente liberdade de voto e quando, por exemplo, num comportamento autoritário, e violador do programa do PSD, por parte de uma direcção de bancada parlamentar, se impunha disciplina de voto, não devia ser respeitada. No caso do PSD isso aconteceu várias vezes em votações sobre o aborto e ainda bem. Quem foi indisciplinado estava mais próximo da concepção personalista fundadora do partido, exercendo uma liberdade de consciência. O mesmo aconteceria se houvesse disciplina de voto a favor do aborto e deputados cristãos a violassem.

O caso da eutanásia é um deles. Remete para uma liberdade íntima, talvez a mais forte de todas as liberdades, a de ser senhor da sua morte. Caso tal acto implique a ajuda de terceiros, ou seja, não se trate de suicídio, a liberdade desses terceiros, que têm também direito numa matéria deste tipo a julgar pela sua consciência, deve ser garantida. Mas, ao mesmo tempo, não deve haver qualquer implicação legal, cumpridas que estão regras que devem apenas garantir a integridade da vontade de quem decide pôr termo à sua vida numa morte assistida.

Já é tempo de se deixar de andar às voltas com tecnicidades jurídicas cujo único papel é impedir que a eutanásia tenha uma base legal, correspondendo à vontade maioritária na Assembleia. É uma péssima maneira de criar obstáculos, com base em convicções religiosas que deviam ficar para quem as tem, para impedir que homens e mulheres sofram desnecessariamente ao se lhes tirar o poder de controlar a sua morte sem mais sofrimento e sem dor. É uma liberdade que também desejo para mim e lutarei por ela o que for preciso.»


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