13.9.24

Um país kafkiano-johnniewalkeriano

 


«Uma questão que raramente se coloca, no âmbito dos estudos literários, é a seguinte: o que poderia ter escrito Kafka se estivesse bêbado? Sóbrio, escreveu a história de um homem que é submetido a um processo incompreensível por um sistema de justiça absurdo. Mas bêbado talvez pudesse ter inventado Portugal. Por vezes, certos comentadores suspiram que determinada realidade portuguesa é kafkiana, esquecendo que o país parece viver sob a influência de outro autor importante, além de Franz Kafka. Esse autor é Johnnie Walker.

A fuga de cinco reclusos do estabelecimento prisional de Vale de Judeus é mais um óbvio e fulgurante exemplo de kafkianismo-johnniewalkerismo. Os fugitivos não escaparam pela calada da noite, mas em pleno dia; não recorreram a um sofisticado plano, mas a uma prosaica escada; a fuga não foi detectada imediatamente, mas quase uma hora depois; quem proferiu a frase “fugiram cinco!” não foi um guarda, mas outro recluso; as diversas forças de segurança não foram acertadas imediatamente, mas apenas horas — ou até dias — depois; as câmaras de vigilância existem, e filmaram a fuga, mas não havia ninguém a ver as imagens. Todos compreendemos isto muito bem porque os serviços prisionais têm com as câmaras de vigilância a mesma relação que nós temos com as bicicletas estáticas. Um dia, olhamos para a bicicleta estática na loja e decidimos: agora é que eu vou começar a fazer exercício. Compramos a bicicleta estática. Instalamos a bicicleta estática no quarto. Usamos a bicicleta estática uma vez. Daí em diante, a bicicleta estática passa a funcionar como cabide. A mera presença da bicicleta estática lá em casa dá-nos a sensação de que fizemos alguma coisa pela nossa boa forma física, assim como a presença de câmaras de vigilância na prisão dá aos serviços prisionais a sensação de que fizeram alguma coisa para prevenir as evasões. O facto de não haver ninguém a usar a bicicleta estática (nem a ver as imagens captadas pelas câmaras de vigilância) não nos desmoraliza. A bicicleta foi adquirida e instalada (e as câmaras também). A massa gorda (ou a população prisional) não seria capaz da desfaçatez de se acumular na zona abdominal (ou de se evadir), ignorando o nosso investimento na bicicleta (ou nas câmaras). Além disso, é importante não esquecer o seguinte: nós vivemos num país ridículo. Há quem viva num país violento. O melhor destino é, sem dúvida nenhuma, o nosso. Talvez isso explique porque é que o ridículo persiste. É muito difícil de combater. Já todos assistimos a manifestações em que centenas de milhares de pessoas exigem, aos gritos, “Basta de violência!” Mas é muito difícil imaginar uma multidão que se mobilize para exigir mudança empunhando cartazes que dizem: “Basta de ridículo.”»


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