«Pode-se dizer que não faz sentido ter o primeiro-ministro meter-se num bote para surfar a angústia nas águas do Douro, enquanto profissionais se esfalfam à procura de um corpo, e a ministra da Justiça ficar em silêncio perante uma fuga destas dimensões, falando depois do Presidente da República. Mas não coisa alguma para dizer. E mais vale esperar por informação do que fazer barulho. Apesar das exigências da máquina de ruido mediático, nada a apontar. E, tirando a necessidade de seguir o guião de todos os novos governos ao dizer que encontrou o caos no Ministério (sobretudo por insistência dos jornalistas), esteve bem na sua conferência de imprensa.
Teria um pouco de cuidado com o vicio da permanente busca da responsabilidade política por tudo o que aconteça no país. Não cabe na cabeça de ninguém felicitar um ministro quando a polícia captura um criminoso. Porque será justo o inverso? Têm vindo a público a decisão do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa transferir um dos presos para uma prisão comum, contra os pareceres unânimes dos serviços. Isso nada tem a ver com esta ministra ou qualquer ministro anterior a ela, com este governo ou qualquer governo anterior a este.
As falhas dos Serviços Prisionais foram evidentes. Na segurança da prisão e na absurda demora na comunicação com a GNR e PJ. A demissão do diretor-geral era, por isso, justa e inevitável. Quanto à ministra, não me parece que alguma coisa lhe seja devida. Com a demissão, cumpriu o que lhe era exigido: detetar, com base em dados rigorosos e documentados, onde falhou a cadeia de comando e mudar os dirigentes.
O vício da responsabilidade política parece sinal de exigência, mas pode ser o oposto. Pode até ser um sinal de atraso democrático, por recusar a autonomia da administração pública e da justiça. A culpa não pode ser sempre do porteiro, é verdade. Mas se a culpa nunca for do porteiro, o administrador do condomínio tem de passar a estar à porta do prédio. A ausência de responsabilização política torna os políticos negligentes. A obsessão pela responsabilidade política transforma os ministros passageiros em para-raios da administração pública permanente, tornando-a negligente.
Como todos os interessados e corporações aproveitam estes momentos para dar força à sua agenda, tentemos pôr as coisas em perspetiva. Aconselho, para isso, uma boa recolha dados feita, no Diário de Notícias, por Fernanda Câncio. A nossa taxa de fuga de reclusos é cinco vezes inferior à da União da Europeia. Se cá é de 6,5 fugas por dez mil reclusos, a da UE é 32. As nossas prisões têm sido seguras na função de impedir os reclusos de fugir. Como relatam inúmeros relatórios, não são seguras é para os próprios reclusos. Porque têm más condições e estão sobrelotadas.
Desde 2009, houve uma redução de 9% dos guardas prisionais enquanto o número de reclusos aumentava 10%. Mesmo assim, o rácio entre reclusos e guardas prisionais é de 3,1, melhor do que os 3,8 da União Europeia. Bem melhor do que Espanha, França ou Inglaterra. Parece é haver má gestão, e aí há responsabilidade política estrutural. Só no Algarve, há três prisões, uma dispersão onde se perde a economia de escala e obriga a ter mais guardas do que reclusos. Isto, para além de os guardas cumprirem funções que não deviam ser suas.
Mas o maior problema é outro e cai mal na agenda securitária que domina boa parte da comunicação social e foi deixando um lastro político: temos reclusos a mais. Como é que um dos países mais seguro da União Europeia (os rankings variam entre o segundo e o quinto) tem uma taxa de 121 reclusos para cem mil habitantes, quando a da Europa é de 108? Como é que a pena média efetiva é, em Portugal, de 28 meses e, na UE, é de 11? 56% dos reclusos cumprem mais de cinco anos de pena, enquanto na UE são 34,5%. Sendo que só 9,3% é por homicídio e 28% por crimes violentos. Prendemos muito e por demasiado tempo. E, no entanto, quem veja noticiários acredita que toda a gente sai em liberdade.
No artigo de Fernanda Câncio há um número, de 2022 (como a generalidade dos outros), que me chamou à atenção e de que já tinha ouvido falar por parte de uma juíza – temos quase 900 reclusos por violação do código da estrada, 579 por conduzirem sem carta. Não é para crimes destes que servem as prisões. Se juntarmos os que estão presos por não conseguirem pagar as multas que subsituem as suas penas, aproximamo-nos de 20% da nossa população prisional. É difícil guardar gente perigosa quando se usa a prisão para crimes menores.
A tal juíza explicava-me que, antes de chegar à prisão, os tribunais tentam outras penas. Só que elas não funcionam. Porque temos um sistema “carcerocêntrico” que não se preparou para aplicar e fiscalizar o cumprimento de penas como o trabalho para a comunidade, por exemplo. A ausência de efetivas punições prévias leva à reincidência até se chegar a um ponto em que o crime se torna demasiado grave.
Há, como se vê, muito para discutir sobre as condições do nosso sistema prisional e a relação da justiça e da sociedade com o encarceramento. Mas, mesmo que esta seja uma boa desculpa para fazer um debate, é preciso dizer o que todos os sistemas prisionais têm fugas. Apesar da gravidade deste caso, o nosso, se se distingue, é por ter poucas.
Podemos aproveitar o momento para debater as deploráveis condições prisionais, que aparecem e sucessivos relatórios europeus e internacionais e que atentam contra os direitos humanos, e o pouquíssimo investimento (transversal a todos os governos) para mudar isto. As principais vítimas são os reclusos. Esse é o debate político para o qual não faltaram avisos e estudos e auditorias (e vêm mais duas). Mas, tirando quando fogem reclusos, alguém quer saber? Rende votos?»
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